DOSSIÊ

Responsáveis por mais de 90% da produção científica do país, com impacto social e econômico, instituições sofrem a falta de investimentos condizentes com sua relevância 

 

 

Texto Nair Rabelo

 

O ensino superior no país representa um complexo de 2.537 instituições, entre universidades, centros universitários, faculdades, institutos federais e Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets), segundo o Censo da Educação Superior do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

 

Mais da metade das universidades brasileiras (53,8%) é pública. São 107, no total, sendo 63 federais – 31 nas capitais e 32 no interior –, com 1,2 milhão de estudantes matriculados. Os 97.580 docentes nas universidades públicas federais oferecem 469 mil vagas em 4.912 cursos de graduação. Os dados são do Censo da Educação Superior de 2018.

 

É nas universidades que se desenvolve a maior parte das pesquisas científicas do mundo. No Brasil, há uma preponderância das universidades públicas nesse posto: são responsáveis por mais de 90% da produção científica do país, segundo relatório da Clarivate Analytics para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Sessenta por cento desse total ficam por conta de apenas 15 universidades públicas (federais e estaduais), e a Universidade de Brasília (UnB) está entre elas, segundo o relatório Research in Brazil, publicado em setembro deste ano.

 

“O Brasil seria diferente se não tivéssemos as universidades públicas federais. Não teríamos o Pré-Sal ou a Embraer, por exemplo”, diz o professor do departamento de Sociologia da UnB Carlos Benedito Martins, acrescentando: “As universidades prestam muita atenção ao país. São guiadas por ética de pesquisa para produzir conhecimento para o bem da sociedade, como saúde, moradia, água, saneamento, gestão de políticas públicas. A atuação das universidades públicas está baseada na construção de um projeto de Estado”.

 

Segundo Martins, sem as universidades, a humanidade voltaria para a Idade da Pedra. Isso porque é nessas instituições que há debate sobre cidadania e formação de mentalidades. “As universidades ilustram a população, formam pessoas educadas, sensíveis para as questões da sociedade e da diversidade”, resume o professor.

 

METAS DE EXPANSÃO

Em 2014, o Congresso Nacional aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE), que estabelece as diretrizes, metas e estratégias para a política educacional em todos os níveis, no período de 2014 a 2024. Com força de lei (13.005/2014), o PNE definiu 20 metas a fim de cumprir o art. 214 da Constituição Federal. A meta de número 12 estabeleceu que, em 2024, o Brasil deveria elevar a taxa total de matrículas da graduação para 50%, e que pelo menos 40% ocorresse no segmento público.

 

Para o especialista em financiamento universitário Nelson Cardoso Amaral, o desafio é enorme. Professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), ele compara a taxa de expansão imaginada pelo PNE com aquela que ocorreu entre os anos de 2005 a 2017, quando o aumento no quantitativo de estudantes foi de 100,9% entre os de graduação, e 203,8% entre os de pós-graduação stricto-sensu.

 

Hoje, o Brasil destina 6% do PIB à educação, de acordo com o relatório Aspectos Fiscais da Educação no Brasil, lançado em 2018 pela Secretaria do Tesouro Nacional.  Porém, a meta 20 do PNE determina, para daqui a cinco anos, a aplicação do equivalente a 10% do PIB em educação. “Atingir as metas do PNE somente seria possível a partir de um programa proposto pelo governo federal”, aponta Amaral, afirmando desconhecer qualquer proposta a esse respeito.

 

“É necessário fazer um investimento maior na rede pública para ampliar as matrículas na educação superior. Em outras palavras, para o alcance das metas é preciso haver uma prioridade orçamentária do Ministério da Educação”, observa a professora Cristina Helena Almeida de Carvalho, doutora em Economia pela Unicamp. Docente do Departamento de Planejamento e Administração da Faculdade de Educação da UnB, ela observa que, junto ao incremento orçamentário, exigem-se outras iniciativas – que já vêm sendo tomadas pelas universidades federais.

 

Nos últimos anos, as Instituições Federais do Ensino Superior (Ifes) já trataram de otimizar a estrutura física e de recursos humanos; cuidaram de ampliar a oferta de vagas, por meio da expansão e interiorização da rede; procuraram fomentar a oferta de educação superior pública e gratuita para professores da educação básica, sobretudo nas áreas de Ciências e Matemática; e ampliaram as políticas de inclusão e de assistência estudantil.

 

Especialista em política educacional, Vera Lúcia Jacob Chaves, docente na Universidade Federal do Pará (UFPA), é pessimista. Ela não precisa de bola de cristal para prever que elevar o número de matrículas, na atual conjuntura, é quase impossível. Antevê que, em 2020, começará um processo de recuo. “Aposto que, nas reuniões para a publicação dos próximos editais para ingresso na universidade, deve haver discussão sobre a redução do número de vagas.”

 

Cristina Carvalho frisa que os problemas de cortes e limitações orçamentárias gerados pelo governo federal comprometem o cumprimento de outras metas do PNE. A meta 15 tentou garantir que os professores da educação básica tivessem formação específica na área em que atuam, e a meta 16 estipulava que 50% fizessem pós-graduação até 2024, além de assegurar formação continuada para eles.

 

“Em outras palavras, o PNE buscava reforçar o papel essencial das universidades federais na formação de professores, por meio dos cursos de licenciatura. O que está acontecendo hoje é que todos estão sendo prejudicados, na medida em que a crise orçamentária, intensa desde 2017, se agravou com novos cortes e contingenciamento de verbas das universidades”, afirma Cristina.

 

No início de 2019, o MEC bloqueou R$ 1,7 bilhão que seriam destinados ao ensino superior federal. Este montante representa 24,84% dos gastos não obrigatórios (chamados de discricionários, que correspondem a contas de água, luz e bolsas estudantis) e 3,43% do orçamento total (que inclui todas as despesas obrigatórias, aí incluídos salários e aposentadorias).

 

Para Nelson Amaral, a própria emenda constitucional nº 95 de 2016, conhecida como emenda do teto dos gastos, constitui-se “um grave impedimento para que essa situação seja alterada, o que só seria possível se o setor educacional fosse estabelecido como realmente prioritário”. O dispositivo congelou os gastos do poder executivo até 2036.

 

APLICAÇÃO REAL

As pesquisas desenvolvidas nas universidades diferenciam os países entre aqueles produtores de ciência e tecnologia e aqueles que são consumidores de tecnologia, como destaca a professora Catarina Almeida Santos, pesquisadora em Políticas Educacionais. “Quando tiramos as possibilidades de desenvolvimento de tecnologia, tornamos o país dependente do que vem de fora”, esclarece a docente da Faculdade de Educação (FE) da UnB.

 

Os grandes produtores de tecnologia são os chamados países desenvolvidos: são nações que produzem em diferentes segmentos, garantem condições de vida adequada para a sua população, não têm grande quantidade de pessoas abaixo da linha da pobreza, oferecem acesso universal à saúde e têm uma população com alto nível de escolaridade. Dentro desses critérios, o Brasil é um país em desenvolvimento.

 

“Quando paramos de produzir conhecimento, voltamos para a lógica de país subdesenvolvido. Isso significa resultados trágicos para o país, como foi até o início dos anos 1990, quando convivíamos com grande mortalidade de pessoas pobres e altas taxas de mortalidade infantil. São questões que estão ligadas a avanços na educação”, esclarece Catarina Santos.

 

Conhecimento é o conjunto de informações adquirido pela humanidade ao longo da história. Ele é renovável, complementável e reciclável, conforme surgem novas descobertas. É transmitido de diversas formas e uma delas, por excelência, é por meio da educação. É pelo processo de transmissão de conhecimento que se pode reavaliar o que às vezes parece consensual e reajustar as compreensões de mundo das pessoas, elaborando novas visões, novas teorias, novas abordagens.

 

Para a pesquisadora, o caminho é continuar avançando na redução das desigualdades sociais do país, e isso passa pelos estudos promovidos nas universidades. Ademais, são as pesquisas que realizam levantamentos de dados sobre questões relevantes ao país, de forma a subsidiar a reflexão e a produção de políticas públicas.

 

Carlos Benedito Martins, que também é presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia, exemplifica que, sem as universidades, progressos em áreas como a Agricultura seriam impensáveis. O mesmo vale para a produção de remédios, saneamento básico e proteção ambiental. “Todas as questões de segurança pública, por exemplo, passam por pesquisas científicas. Antropologia, Sociologia, Política, Direito, as ciências humanas também têm aplicação muito forte na sociedade”, destaca.

 

É o que demonstra o ranking do número de depositantes de pedidos de patente produzido pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial. Dos dez principais depositantes residentes no Brasil, no ano de 2017, as universidades continuam a dominar o setor.  Além disso, oito das dez primeiras posições são ocupadas por universidades federais e estaduais. Esse top dez representa quase 20% do total de requerimentos. O relatório também aponta que, assim como em 2016, apenas uma empresa aparece entre as dez maiores depositantes residentes no país.

 

O desenvolvimento e a produção de tecnologias em saúde, por exemplo, geram muitos produtos que beneficiam a sociedade. Um exemplo recente produzido na UnB é o Projeto Rapha, que criou um dispositivo de luz LED para tratar e curar feridas de pessoas com diabetes. “O equipamento vai evitar que feridas evoluam a ponto de ocorrer a amputação”, explica Mário Rosa, pesquisador colaborador do projeto. Isso para citar apenas um dentre centenas de projetos que beneficiam a população.

 

ESTÍMULO AO PENSAMENTO

A lei 9.394 de 1996, ou Lei de Diretrizes e Bases (LDB) define, no artigo 43, que o papel da educação superior no Brasil é estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo. Além disso, a missão das instituições é formar pessoas em várias áreas do conhecimento, tanto para abastecer os postos de trabalho, quanto para contribuir para o desenvolvimento da sociedade brasileira. E ainda incentivar a pesquisa e a investigação científica para o desenvolvimento de ciência e tecnologia e para a criação e difusão de cultura.

 

O ensino superior no país é ofertado em cinco modalidades de instituições: universidades, centros universitários, faculdades, institutos federais e Centros Federais de Educação Tecnológica (Cefets).

 

O que diferencia as universidades das outras modalidades de ensino é o leque de ações que desempenham: por determinação constitucional, descrita no artigo 207 da Constituição de 1988, as universidades gozam de autonomia didático-científica e de gestão (nos limites estabelecidos em lei). Cabe a elas realizar o tripé ensino, pesquisa e extensão. As faculdades e centros universitários concentram as ações no ensino. A extensão ocorre por meio do acesso da população a atividades desenvolvidas pela universidade, de modo a difundir à comunidade as conquistas e os benefícios resultantes de pesquisas e inovação.

 

As universidades ofertam cursos de graduação, pós-graduação e de extensão. Os de graduação são abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo. Conferem diplomas que podem ser de três tipos: bacharelados, licenciaturas e cursos superiores de tecnologia. De acordo com o Censo, as universidades públicas federais oferecem um total de 469 mil vagas para cursos de graduação, divididos em 4.912 cursos, somando 1,2 milhão de estudantes matriculados.

 

Os cursos de pós-graduação são ofertados nos programas de mestrado e doutorado (pós-graduação stricto sensu) e cursos de especialização (pós-graduação lato sensu) e são abertos a candidatos diplomados em cursos de graduação e que atendam às exigências das instituições de ensino. A pós-graduação está, em sua maioria (57,6%), nas instituições federais, segundo dados do Sistema de Informações Georreferenciadas da Capes (Geocapes) de 2018. Assim, quase 60% dos mestres e doutores formados no país obtêm os títulos nas federais.

 

No período de 1997 a 2016, as universidades públicas federais saltaram de 39 para as 63 de hoje. Uma expansão de 61%. Ainda assim, o modelo de faculdade é predominante, correspondendo a 81,5% das instituições, sendo 93% privadas. Isso é relevante, ao se considerar que é nas universidades públicas (federais, municipais e estaduais) que se realiza a maior parte da pesquisa no país e elas representam apenas 4,2% do total de instituições de ensino superior.

 

A pesquisadora da FE Catarina Santos destaca as mudanças positivas pelas quais as universidades públicas federais têm passado nas últimas duas décadas: “A universidade mudou de cara. Nos últimos anos, temos mais negros e estudantes oriundos da periferia”. Foram estabelecidas políticas de acesso e de permanência que, segundo a professora, precisam ser acompanhadas de ações que visem garantir a conclusão dos cursos.

 

A UnB possui programas de assistência estudantil como o bolsa alimentação, com gratuidade de refeições no Restaurante Universitário; auxílio socioeconômico, creche e moradia, entre outros. Ademais, a UnB é pioneira entre as federais na adoção de cotas raciais para os processos seletivos de ingresso na graduação.

 

O Censo de 2018 aponta que são 97.580 docentes nas universidades públicas federais. A maior parte desses professores (70 mil) têm doutorado e a maioria dos títulos foi obtida na rede pública. Ainda segundo o Censo, a maior parte dos professores com doutorado está nas universidades, o que coaduna com o fato de essas instituições serem o celeiro das pesquisas no país, já que são os docentes das universidades que estão à frente dos processos de ensino, pesquisa e extensão.

 

As atividades desempenhadas por um docente nas universidades são variadas. A docência envolve processos de pesquisa, participação em atividades administrativas, em câmaras de pesquisa e de pós-graduação, em decanatos, comitês de ética, elaboração de pareceres técnicos, preparação de aulas, orientação de trabalhos de conclusão de cursos da graduação, de estudantes da pós-graduação (mestrado e doutorado) e iniciação científica.

 

“Também publicamos artigos e nos envolvemos em atividades correlatas, como dar entrevistas, proferir palestras, participar em seminários, representar a universidade em congressos”, detalha a professora Suélia Rodrigues Fleury Rosa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação de Engenharia Biomédica na UnB.

 

 

UNIVERSIDADES NO MUNDO E NO BRASIL

Foi na Idade Média, na cidade de Bolonha, na Itália, que surgiu a primeira universidade do mundo ocidental, ainda no século XI. Segundo o historiador Peter Burke, o objetivo do lugar era transmitir conhecimento. A partir do século XVI, as universidades passaram a ser protagonistas na produção do saber, posição que ocupam até hoje em todo o mundo.

 

Há debates sobre qual foi a primeira universidade da América Latina. Em 1538, instalou-se a Universidad Santo Tomás de Aquino (atualmente Universidad Autónoma de Santo Domingo), na região que hoje corresponde à República Dominicana, por determinação da coroa espanhola, durante a colonização hispânica nas Américas. A polêmica fica na data da edição da bula papal que reconheceria oficialmente a instituição, e que foi lançada só em 1558. Assim, a Universidad Nacional de San Marcos, em Lima, Peru, teria sido a primeira fundada, em 1551.

 

No Brasil, o surgimento do ensino superior deu-se ainda durante o período colonial, quando da mudança da família real portuguesa para cá, em 1808. As Escolas de Cirurgia da Bahia (hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, UFBA); de Anatomia, Medicina e Cirurgia, no Rio de Janeiro (atual Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ); e a Academia da Guarda Marinha, também no Rio, foram as primeiras. Depois, vieram as faculdades de Direito, em São Paulo e em Olinda, em 1827. A primeira universidade brasileira moderna, criada com base no tripé ensino-pesquisa-extensão, foi a Universidade de São Paulo (USP), em 1934.

 

Já a pós-graduação foi estruturada e institucionalizada no Brasil em 1968, com a Lei n° 5.540/68, que também definiu os moldes da pesquisa acadêmica. “A lei incentivou docentes a fazer mestrado e doutorado, incluindo pesquisa, que cresceu em várias áreas. Hoje, existe no país pós-graduação em todas as áreas do conhecimento. Antes, a pessoa precisava ir para o exterior. Isso tudo foi possível graças a uma política de Estado”, ressalta Carlos Benedito Martins.

 

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) desempenharam funções de relevo, ao constituir comissões que acompanharam o estabelecimento da pós-graduação no Brasil. Em 1972, foi criado um sistema de avaliação dos cursos. Nesse contexto, nasceram as bolsas de iniciação científica. Assim, os docentes começaram a trabalhar com jovens desde cedo, ensinando o que é a pesquisa científica, como funciona a ciência. “Hoje várias pessoas que estão atuando nas universidades passaram pela iniciação científica. Por isso, as bolsas são tão essenciais”, observa Martins.

 

Se a iniciação científica é importante para a continuidade das pesquisas no país, o lado extremo do processo, que é o pós-doutorado, também tem bastante relevância. São estágios de estudo feitos por pesquisadores que já concluíram suas teses de doutorado. O foco é o dinamismo do conhecimento e a necessidade de os docentes estarem atualizados.

 

“Um pós-doutorado é muito importante para a reciclagem dos professores, para a inserção na área de pesquisa”, ressalta Martins. O resultado prático são aulas atualizadas, com bibliografia revisitada, o que impacta em pesquisas mais avançadas, além do estabelecimento de redes de parceria acadêmica, muitas delas internacionais. “Vivemos num mundo extremamente globalizado, a ciência é globalizada, por isso precisamos estar em contato com pesquisadores de outros países”, conclui o professor.