Texto Thaïs de Mendonça Jorge

Foto Audrey Luiza

Ilustrações Helena Ayala

 

A bióloga Mercedes Maria da Cunha Bustamante é uma das maiores especialistas no bioma Cerrado. Nascida no Chile,ela se formou em Ciências Biológicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), fez mestrado na Universidade Federal de Viçosa e doutorado na Universidade de Trier (Alemanha). Professora do Instituto de Ciências Biológicas (IB) da Universidade de Brasília (UnB), ela se qualifica como “otimista”, embora lide com a triste realidade da destruição do Cerrado. “Percebemos que ocorre um processo de conscientização”, diz, ressaltando que a metade da área a que o ecossistema ficou reduzido é um indicativo da necessidade de políticas públicas urgentes. Mercedes Bustamante é detentora do prêmio Verde das Américas (2009), do prêmio Cláudia na categoria Ciências (2007) pelos seus estudos sobre o Cerrado. Em 2018, recebeu a Comenda da Ordem Nacional do Mérito Científico e foi eleita para a The World Academy of Sciences (Academia Mundial de Ciências).

 

Darcy – Por que somente uma pequena parte do Cerrado foi avaliada e pesquisada até agora?

 

Mercedes Bustamante – É importante ver a extensão do bioma: o Cerrado cobre 24% do Brasil, quase um quarto do território nacional, distribuído em 11 estados brasileiros. Primeiro temos a dificuldade da extensão, depois temos que lembrar a enorme variedade que há, não é uma área homogênea, existem muitas variações regionais, o que torna o trabalho mais desafiador. Há também um processo histórico de ocupação da parte central do país. Os trabalhos pioneiros são das décadas de 1940 e 1950 da Universidade de São Paulo. Houve progresso muito grande com a instalação da Universidade de Brasília. A UnB se tornou um polo gerador de conhecimento sobre o Cerrado. A própria interiorização da universidade brasileira foi muito importante para se chegar aos rincões do país. O mesmo aconteceu na Amazônia. A pesquisa partiu de dois institutos de pesquisa — o Museu Paraense Emílio Goeldi e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia — que concentram grande parte dos estudos na região. É preciso fortalecer as instituições, consolidar os grupos emergentes, porque são as pessoas envolvidas nessas pesquisas que serão capazes de produzir e manter os projetos de longa duração. As transformações que observamos nos ecossistemas são processos longos, que exigem acompanhamento, mas, infelizmente, no Brasil, há poucos programas de monitoramento em longo prazo.

 

Darcy – Em sua opinião, qual a razão da invisibilidade a que o Cerrado esteve submetido até agora?

 

MB – Por um lado, muita gente conservava a ideia de que o Cerrado era feio e com poucos recursos. Havia a tradição de dar maior importância aos sistemas florestais e pouca valorização dos ecossistemas mais abertos. A pesquisa está mudando isso: mostra-nos a grande beleza paisagística, cênica, a relevância do Cerrado nos serviços ambientais, no suprimento de água e na regulação do clima. Por outro lado, desde o início, a ocupação do território tinha como objetivo a extração dos recursos minerais e, mais recentemente, a pecuária extensiva e, na última etapa, a agricultura intensiva, com pouca valorização do que a vegetação nativa poderia fornecer. O Cerrado sempre foi visto como área de expansão da fronteira agropecuária. Tudo isso contribui para o processo de degradação e desmatamento desse bioma.

 

Darcy – Todo mundo fala na redução dos índices de desmatamento na Amazônia, mas quase nada se sabe sobre as perdas na região antigamente coberta por Cerrado. Qual a situação hoje?

 

MB – Ele já perdeu 50% da cobertura vegetal original e é pouquíssimo protegido. Na região conhecida como Matopiba — Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia — observamos a expansão rápida do desmatamento, do mesmo jeito que vimos acontecer na parte Sul do bioma, com a chamada fronteira agropecuária. Estamos repetindo a história numa nova fronteira que está sendo aberta. Precisamos avançar muito nas pesquisas e repensar o modelo de agricultura, que gerou um passivo ambiental de áreas degradadas. Num mundo em que as variações climáticas estão se acentuando — começamos a nos perguntar por que está chovendo mais, ou menos, por que a estação chuvosa demora a chegar —, volta-se a atenção ao Cerrado no sentido de conservação da água. Qual é a atividade mais dependente de água? Sem dúvida nenhuma, a agricultura. O problema é mudar a consciência com a velocidade e urgência necessárias. Potenciais econômicos sustentáveis foram sendo deixados para trás. Em vez de abrir novas áreas, o correto seria recuperar e utilizar as áreas degradadas para novas finalidades. Esse é um passivo a ser resolvido.

 

Darcy – No Cerrado encontram-se as nascentes de grandes bacias hidrográficas do país, que abastecem 70% das águas das regiões Norte (bacia Araguaia-Tocantins), Sul-Sudeste (Paraná) e Nordeste (São Francisco). O que podemos dizer de nossas reservas hídricas?

 

MB – O Brasil também precisa avançar muito no cuidado de seus recursos hídricos. Tratamos muito mal nossas águas superficiais e subterrâneas. O Cerrado é como se fosse uma esponja, garantindo a lenta infiltração de líquido que vai abastecer os depósitos mais profundos. Imagine a vegetação como se fosse uma interface: o sistema radicular e as folhas conectam o solo e a atmosfera e regulam as trocas entre esses dois compartimentos. Às vezes se separa água superficial e água profunda, porém, todas pertencem ao mesmo sistema. Se se remove a cobertura, reduz-se a infiltração. Quando os aquíferos se tornam superficiais, dão origem aos nossos cursos d’água. A ocupação gera um processo de poluição do solo e pode haver contaminação das águas subterrâneas. Hoje, no Brasil, pelo menos 200 municípios utilizam a água do aquífero Guarani. Esses municípios dependem do abastecimento profundo, de poços artesianos, porque têm menos disponibilidade de retirada de águas superficiais. Existe uma relação forte entre o que acontece na atmosfera, a vegetação e os processos de armazenamento no subsolo. Se eu retiro o elo de ligação, se o terreno fica degradado ou parcialmente descoberto, isso vai afetar todo o sistema. Não podemos explorar mais água do que a capacidade de recarga do sistema. É a Ciência que mostra as conexões.

 

Darcy – O que é o Aquífero Guarani?

 

MB – O Aquífero Guarani tem importância grande pelo volume que representa: são 1,2 milhão de quilômetros quadrados de uma camada de arenito subterrânea, porosa, que retém água doce e atinge estados desde Mato Grosso até Rio Grande do Sul. Não pertence apenas ao Brasil, abrange Uruguai, Paraguai e Argentina. A preocupação é a mesma de todas as reservas de água: devemos garantir que continuem a ser abastecidas, porque o processo é muito lento. Não é só quanto à quantidade como à qualidade da água. Na ocupação das terras, temos que assegurar a quantidade de precipitação — que tem a ver com a cobertura vegetal — e evitar que haja contaminação do solo, que depois leve ao comprometimento dos mananciais e inviabilize a própria utilização pela agricultura ou pelo ser humano.

 

Darcy – Fala-se hoje que existem 36 locais prioritários para conservação da biodiversidade global. Como se chegou a este número?

 

MB – São os chamados hotspots (pontos quentes) de conservação. Se tivéssemos que eleger prioridades aos tomadores de decisão, o que indicaríamos? Os sistemas muito ricos em espécies endêmicas — de ocorrência restrita naquela área — e os locais que vêm perdendo cobertura vegetal rapidamente. No Brasil, os hotspots são a Mata Atlântica e o Cerrado. A Mata Atlântica já perdeu cerca de 80% e o Cerrado, 50% de suas coberturas originais. Todos os biomas brasileiros demandam a atenção do poder público, mas no Cerrado o processo está se acentuando em larga escala. É um alerta, como se dissessem: “Vocês têm um patrimônio natural importante que está se esvaindo, então segura aí”. Vamos olhar a situação do Distrito Federal. Chama a atenção o processo de instalação da capital federal há quase 60 anos; agora perdemos cerca de 70% da vegetação natural. O que existe de Cerrado está nas Unidades de Conservação: o Parque Nacional de Brasília, a estação ecológica de Águas Emendadas, o Jardim Botânico de Brasília, a Fazenda Experimental da UnB (Água Limpa), a reserva ecológica do IBGE. São ilhas dentro de uma matriz urbana, dificultando o movimento das espécies e a manutenção de importantes processos ecológicos. Na escala bioma, se mantido o ritmo atual de desmatamento, em algumas décadas restarão somente manchas desconectadas de vegetação natural.

 

Darcy – Qual é o recado da natureza? O que os cenários de alteração do clima estão nos dizendo em relação ao Cerrado?

 

MB – Esta é a pergunta que nos fazemos: será que as unidades de conservação que estabelecemos há 30, 40 anos, estarão no local correto daqui a 40 anos? Serão as melhores áreas para conservação da biodiversidade, para a proteção das espécies no futuro? Temos que elaborar um planejamento estratégico vendo o que nos espera pela frente, como o clima vai mudar. Precisamos de um desenho que conserve áreas grandes e permita processos em escala regional. Nesse sentido, os proprietários rurais têm importante contribuição a oferecer. O Código Florestal — legislação ambiental mais importante do Brasil — estabelece que as propriedades rurais devem contribuir na conservação de duas formas: protegendo a vegetação ripária (as matas ciliares e de galeria, por exemplo) chamada de áreas de proteção permanente — e mantendo 20% da cobertura vegetal como reserva legal, que pode ser utilizada, mas não pode ser derrubada. Se dermos a eles incentivos adicionais e fizermos com que se envolvam na conservação, temos chance de criar um desenho mais inteligente. As áreas conservadas em propriedades rurais poderiam conformar um amplo território de conservação, juntando as manchas e criando trechos maiores. Nossa estrutura fundiária é diferente da Amazônia: aqui, a maioria das áreas é particular. Então, é preciso discutir com o setor privado. Trazer o setor para discutir como conciliar na paisagem áreas produtivas com os remanescentes de vegetação nativa. Já existe uma percepção de que precisamos usar as espécies nativas e de que, por meio da Bioeconomia, podemos explorar a região para fins biotecnológicos, cosméticos, farmacêuticos e alimentícios.

 

Darcy – Vem ocorrendo um despertar para a relevância do bioma?

 

MB – Saiu agora um relatório da Plataforma Brasileira de Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos sobre a situação dos polinizadores, que mostra o impacto que os agrotóxicos e o desmatamento representam na atualidade. Se não tiver flor, não tem fruto; se não tiver fruto, não tem comida. Estima-se que esse serviço ambiental de polinização que os animais — insetos, como abelhas, borboletas, besouros, aves e répteis — realizam tem um valor de 42 bilhões de dólares. Imagine se o Brasil perder? A fauna, por enquanto, faz de graça, e, além de levar o pólen de uma planta a outra, possibilitando a manutenção da biodiversidade, ainda contribui no controle de pragas. Hoje, grupos importantes e instituições de pesquisa de todo o planeta estão entendendo a importância do Cerrado na regulação do clima e das reservas de água doce, na conservação de flora e fauna, reconhecendo o poder econômico das espécies nativas. Afinal, são pelo menos 12 mil espécies vegetais no Cerrado. É como uma biblioteca, com informações diferentes. Se queimarmos isso e substituirmos por apenas três culturas — por exemplo, soja, milho, algodão —, os prejuízos ambientais serão imensos, como fonte alimentar e como potencial para gerar novos produtos.

 

Darcy – E o que fazer com as áreas já devastadas?

 

MB – Hoje, o Centro-Sul do Cerrado já foi majoritariamente desmatado. É preciso restaurar. No Centro-Norte estão os últimos remanescentes de nosso bioma natural. É preciso reter o avanço. Uma área é para remediar, outra, para tentar segurar. O Código Florestal determina que os espaços sejam recuperados. Entretanto, a recuperação depende da intensidade do uso anterior. Se a área foi aberta há muito tempo e se encontra muito degradada, se não tem áreas nativas próximas, não há como as sementes chegarem, só cabe regeneração assistida, o ser humano tem que intervir. Uma das questões importantes de pesquisa é saber, dos terrenos que devem ser restaurados, quais os que podem passar por uma regeneração natural, quais os que devem ser assistidos e quanto isso vai custar. No tópico de valorizar os sistemas florestais, como dissemos, avançamos mais na recuperação de florestas e agora temos necessidade de desenvolver mecanismos de restauração do Cerrado. Temos que trazer arbustos, plantas pequenas, gramíneas, empreender uma restauração adequada ao bioma Cerrado, não simplesmente importar tecnologias desenvolvidas para outros biomas. A gente tem que olhar a saúde ambiental como se fosse nossa própria saúde. Por que é, né?

 

Darcy – Como estão as pesquisas?

 

MB – Trabalho há 25 anos com o tema. O panorama vem mudando, embora não na velocidade em que os problemas avançam. Em 2018, fizemos, no Jardim Botânico de Brasília, a Semana do Cerrado. Foi um evento com escolas públicas, compareceram mais de 3 mil crianças de todas as idades. Quando se apresenta às pessoas o que é o Cerrado, elas se encantam, começam a ver coisas que não viam. Uma menina trouxe os pais e, sozinha, mostrou a eles o que tinha aprendido. A UnB possui uma situação privilegiada no coração do bioma. No entanto, a sensibilização dos setores econômicos é que é mais necessária. Quem deveria estar preocupado com a questão da destruição do Cerrado é o Ministério da Economia. É importante colocar nosso produto lá fora, mas não a qualquer preço. Os organismos internacionais estão de olho. 65% da eletricidade do Brasil é gerada por água, que depende de chuva e de uso da terra. A discussão não deve ficar restrita a um único setor. Temos também que cobrar das empresas a sua responsabilidade. O setor empresarial tem uma tarefa importante, gera emprego; só que não podemos esquecer os outros lados, a contaminação e degradação ambiental. O lucro é particular, mas o prejuízo é socializado.

 

Darcy – Como o Cerrado é ensinado nas escolas?

 

MB – A distribuição ampla do bioma dificulta a criação de uma identidade associada a ele, pois está em muitos estados e regiões diferentes. Escolas podem ter papel importante na valorização desse tema. Nossos livros didáticos têm que ter melhor conteúdo para entender os ecossistemas brasileiros. A Caatinga também vem perdendo espaço. Não é raro ver um texto sobre o Cerrado com foto da savana africana. Achei interessante, na Semana do Cerrado do Jardim Botânico, que os alunos de licenciatura em Biologia e da Arquitetura da UnB criaram jogos didáticos para trabalhar com espécies da fauna e flora do Cerrado. Foi uma forma lúdica de tratar o assunto. Seria bom ter o Museu de Ciência e Tecnologia de Brasília, que funcionaria como fonte de material e atividades, suporte às escolas para introduzir informação de mais qualidade nas diferentes faixas etárias.

 

Darcy – O que é o PPCerrado? O que precisa ser feito?

 

MB – Criado nos moldes do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), o PPCerrado é uma iniciativa do governo em prol de uma concertação, com a ideia de trazer as diferentes partes para conversar. Esse é o primeiro ponto. O poder público tem função importante. Embora o Código Florestal diga que se pode desmatar até 80%, se a região está muito desmatada, o órgão ambiental pode licenciar um percentual menor, por exemplo 50%. É preciso que se considere o aspecto regional, da paisagem. Ao mesmo tempo, devemos pensar em políticas de incentivos positivos. Se as pessoas preservam mais, que vantagens podem ter e como a sociedade pode reconhecer a boa gestão da propriedade? Também é necessário fortalecer os órgãos que lidam com o bioma. Há áreas passíveis de ser exploradas pelo turismo e isso gera renda. A população precisa ser envolvida nessa junção da economia com a biologia. Outro ponto são as pesquisas: temos que desenvolver o conhecimento científico para que a Ciência possa oferecer alternativas de uso econômico com rentabilidade. Não nos esqueçamos que o Cerrado é a casa de povos indígenas, raizeiros, quilombolas, uma enorme diversidade de populações tradicionais. Temos que garantir que eles possam manter seus modos de produção. Mais um ponto: alguns biomas brasileiros foram reconhecidos como patrimônio nacional. A Caatinga e o Cerrado ficaram de fora. Existe uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) parada no Congresso. É uma questão de justiça. Isso vai mudar alguma coisa? Muitos dos processos começam simplesmente pelo lado da percepção e do reconhecimento.

 

Darcy – Qual é a expectativa com o novo governo?

 

MB – Vejo com bastante preocupação as mudanças que vêm sendo implementadas na área ambiental, como uma sinalização do enfraquecimento dos organismos de fiscalização, gestão, proteção e conservação. Se se pega um sistema fragilizado e ainda se enfrenta uma política de esvaziamento e perda de recursos, se está na contramão. O movimento ambientalista brasileiro sempre teve papel importante nesse processo. Por um lado, isso deveria ser reconhecido e canalizado pelas nossas lideranças políticas; por outro, essas lideranças precisam se comprometer com as questões, debater em nível hierárquico alto, a fim de que tudo repercuta em políticas públicas. No caso do Cerrado, há urgência de providências para uma resposta mais rápida. Tenho preocupação com as ações e com o discurso do novo governo. O discurso inicial foi o de acirramento das separações, o meio ambiente visto como empecilho. É uma fala equivocada, divisionista, quando os setores deveriam estar dialogando para gerar uma agenda comum. Devemos lembrar que quem conserva também produz.