O Centro UnB Cerrado e produtores compartilham saberes em defesa da agricultura familiar e da proteção ao meio ambiente

Texto Vanessa Vieira Fotos Luis Gustavo Prado Ilustrações Marcelo Jatobá

 

Foto Virgílio Magalhães é um dos agricultores do Assentamento Silvio Rodrigues na Zona Rural de Alto Paraíso de Goiás

 

A terra é minha vida. Eu vivo para cultivar e não vejo outro jeito de viver.” É com essa paixão pelo campo que Virgílio Krause Magalhães apresenta sua plantação, com nove hectares de cultivo, de um total de 20 hectares de propriedade. A variedade é de dar gosto: abóbora moranga, mandioca, melancia, banana, batata, milho, limão, melão e muito mais.

 

No meio da plantação, manuseando os frutos, com suas folhas e raízes, Virgílio Magalhães fica à vontade. “Tudo aqui eu gosto de multiplicar. Olha a cor deste feijão, que coisa mais linda!”, diz, com a mão cheia de grãos de feijão roxinho, uma das cinco variedades que planta em sua terra. “Esta aqui é rica em Ômega 3”, aponta mais adiante, referindo-se à beldroega — planta rasteira de cor verde-escura, com pequenas folhas carnudas ovais, rica em nutrientes e minerais. A beldroega é utilizada na medicina natural, mas pouco frequente na alimentação comum.

 

A família de Virgílio é uma das 114 que integram o Assentamento Sílvio Rodrigues, situado na área rural de Alto Paraíso de Goiás (GO), cidade que é porta de entrada para o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Parte dos moradores do assentamento está na região há mais de três décadas e outra chegou com o Movimento dos Sem Terra (MST) em 2003. Porém, o reconhecimento oficial pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) só aconteceu em 2005. No caso de Virgílio, a posse definitiva se deu em 2010, depois de disputas judiciais com outro interessado.

 

Para ele e para as outras famílias assentadas, junto à conquista da terra veio a necessidade de ter recursos para investir na lavoura e torná-la fonte de renda. Os novos produtores também temiam não ter espaço no comércio local para vender a colheita. Foi aí que entrou a contribuição do Centro de Estudos Avançados do Cerrado (Centro UnB Cerrado), unidade multidisciplinar da Universidade de Brasília (UnB).

 

“Nosso primeiro desafio foi empoderar essas famílias para que elas acreditassem que conseguiriam viver da terra”, relembra a docente da UnB Nina Laranjeiras, uma das idealizadoras do centro, inaugurado em 2011. Paralelo a isso e com apoio de órgãos e associações locais, o centro contribuiu para viabilizar aos assentados um espaço adequado para a venda dos alimentos.

 

Foto Plantação de soja com mata nativa ao fundo em Alto Paraíso de Goiás

 

“Já existia, em Alto Paraíso, uma feira tradicional aos sábados, que tem seu rol de fornecedores consolidado. Nosso desafio foi criar espaço para os produtores do assentamento e consolidar a feira junto ao público”, informa Nina, que é pesquisadora na área de Segurança Alimentar e Agroecologia. Assim, em 2015, surgiu a Feira Popular da Agricultura, realizada às quintas-feiras e aos domingos, na praça do Centro de Atendimento ao Turista de Alto Paraíso.

 

Atualmente, a iniciativa reúne, em média, 12 produtores do assentamento e outros fornecedores locais de variados produtos. A maioria da clientela nem faz ideia de quanta história há por trás das mercadorias adquiridas de produtores como Virgílio. Mas, se o esforço e amor com que cultivam a terra não podem ser mensurados, outro aspecto agrega qualidade e valor comercial à oferta: os produtos são livres de agrotóxicos.

 

O motivo tem sido suficiente para garantir a venda de toda a produção. “Somos procurados por muitos turistas, gente da cidade e da região que buscam alimentos mais saudáveis. A clientela é exigente e a demanda está ótima”, conta Virgílio, satisfeito. Ele relata que a maioria dos participantes da feira estava sem trabalho, mas hoje tem de onde tirar o sustento. “Isso tem melhorado nossas vidas”, comemora o agricultor, que preside a Associação dos Pequenos e Médios Produtores do Assentamento Sílvio Rodrigues e Região.

 

Aos poucos, os pequenos produtores vão ampliando suas lavouras. Os desafios são muitos, como a situação de Virgílio, que trabalha na roça praticamente sozinho. Os quatro filhos, já crescidos, deixaram o campo em busca de outras oportunidades. A ajuda e a companhia constantes vêm da esposa, seja nos serviços de casa, seja na venda dos alimentos e no roçado.

 

“O agricultor familiar tem poucos incentivos quando sua realidade é comparada ao agronegócio. A vida no campo é muito difícil e, por isso, principalmente os jovens vão embora para as cidades”, observa Nina Laranjeiras. O trabalho da docente junto ao Centro UnB Cerrado envolve a valorização da cultura do campo e o fortalecimento da agricultura familiar, com atenção especial ao jovem.

 

“Se existe algo na agricultura ainda valorizado, isso está relacionado às tecnologias do agronegócio. A agricultura familiar e os saberes tradicionais são vistos como algo ultrapassado, sem lugar na sociedade moderna. Então, ao sair do campo, o jovem sente vergonha da origem. Ele é desvalorizado em sua identidade”, analisa a docente, que coordenou, entre outros, o projeto Agroecologia, inovação e sustentabilidade: ressignificando a relação do jovem com o campo.

 

A pesquisadora acrescenta que a presença da Universidade na Chapada dos Veadeiros possibilita realizar pesquisas em diálogo com as pessoas que têm o conhecimento tradicional do Cerrado: “Não podemos pensar o Cerrado sem seus povos, senão vamos continuar destruindo o bioma e apenas fazendo unidades de conservação. Precisamos do Cerrado vivo, das pessoas vivas. A UnB oportuniza esse conhecimento”.

 

Nina Laranjeiras faz crítica à priorização do agronegócio como estratégia de produção de alimentos no país, o que, em sua avaliação, “está a serviço de interesses do capital transnacional, com importação de agrotóxicos”. Ela defende que, para atuar na conservação do Cerrado, é preciso conciliar alternativas que não trazem o mesmo impacto do agronegócio.

 

Para a especialista, o apoio de políticas públicas para a agricultura familiar seria uma estratégia viável para levar alimento saudável à mesa de todos os brasileiros, além de respeitar aqueles que desejam permanecer no campo, tirando dali o sustento. Parte da contribuição para fomentar esse ideal acontece por meio do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisa em Alimentação Sustentável e Produção Agroecológica (Naspa), que, desde 2013, envolve jovens e famílias de agricultores na troca de saberes sobre cultivo agroecológico, segurança alimentar e soberania alimentar.

 

Com a máxima de que “comer é um ato político”, a professora Nina defende que a proteção ao meio ambiente começa pelo próprio corpo, com o hábito diário que todos nós praticamos: comer. Enquanto a pesquisadora dá voz ao direito de ter acesso ao alimento saudável, Virgílio estende as mãos para lavrar a terra.

 

CENTRO UnB CERRADO

 

Criado para promover a conservação ambiental e o desenvolvimento sustentável, o Centro UnB Cerrado está estrategicamente situado em Alto Paraíso de Goiás, um dos oito municípios que compõem a Chapada dos Veadeiros, no nordeste goiano, a 230 km de Brasília. Pela riqueza natural e alto índice de espécies endêmicas, que vivem exclusivamente em determinada região geográfica, a Chapada é uma região prioritária para a conservação da biodiversidade e preservação do Cerrado no Estado de Goiás.

 

Além disso, a Chapada dos Veadeiros é famosa por sua rara beleza. Do alto de imensos paredões rochosos, a água cristalina jorra em quedas que podem atingir mais de cem metros. É o caso do Salto do Rio Preto, que, junto a outras centenas de cachoeiras e corredeiras, exibe abundância de águas. A riqueza da fauna e da flora em nada perde para os mananciais. O azul cor de céu das asas da arara-canindé contrasta com o fascinante amarelo do corpo, quando a ave — geralmente um casal — corta a paisagem de amplas extensões verdes. “Esta é uma das poucas regiões do Cerrado que ainda mantém remanescentes da vegetação nativa com extensão territorial capaz de suportar espécies que demandam grandes áreas para sobreviver, como a onça- pintada, tamanduá-bandeira, anta, lobo-guará”, explica o diretor do Centro UnB Cerrado, André Cunha.

 

Doutor em Ecologia, Conservação e Manejo da Vida Silvestre, o professor explica que, ao contrário da parte sul do Estado, que sofre intensa degradação, a parte norte-nordeste do território ainda dispõe de grandes blocos contínuos de áreas preservadas. Tanta riqueza outorga ao território o título de Reserva da Biosfera e faz com que o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros seja reconhecido como sítio do Patrimônio Mundial Natural pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

 

Além de ser um dos principais destinos turísticos em Goiás, a Chapada é um importante laboratório de pesquisa. Ecologia dos anfíbios; povos tradicionais, saberes e fazeres; indicadores de qualidade ambiental; geoquímica e qualidade das águas são algumas das linhas de investigação científica protagonizadas por pesquisadores do Centro UnB Cerrado.

 

ECOTURISMO E CONSERVAÇÃO

 

Uma estratégia de apelo em prol da conservação da biodiversidade tem sido o trabalho de conscientização por meio do turismo de natureza, também chamado de ecoturismo. Levantamento do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) aponta que, em uma década, o turismo nas unidades de conservação federais aumentou 563%, saltando de 1,9 milhão visitantes em 2006 para 10,7 milhões em 2017. “O Brasil tem um histórico de baixa visitação nos parques nacionais. Felizmente isso está mudando nos últimos anos. O chamado turismo de natureza é uma oportunidade para promover a sensibilização das pessoas em prol do meio ambiente”, analisa o professor André Cunha, que dá aulas no Centro de Excelência em Turismo (CET) da UnB.

 

A tendência tem sido verificada no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Dados da unidade mostram que, uma década atrás, o fluxo anual de visitantes girava em torno de 20 mil. Em 2018, esse número alcançou A Chapada é uma das poucas regiões do Cerrado que suporta espécies com demanda por grandes áreas, como a onça-pintada o recorde de 74 mil pessoas. Avaliar as contribuições econômicas e financeiras do turismo para o parque foi o objetivo da pesquisa realizada por Paula Oliveira Gomes no Mestrado Profissional em Turismo do CET.

 

Foto Cachoeira São Bento, Alto Paraíso de Goiás

 

O estudo aponta que os 64 mil visitantes do parque nacional, em 2016, movimentaram cerca de 92 milhões de reais na região. A conclusão é de que o turismo de natureza tem se consolidado como alternativa viável, além de ser favorável ao desenvolvimento sustentável, não acarretando danos como os gerados por atividades de exploração intensiva dos recursos naturais.

 

“O crescimento da visitação é potencialmente muito bom, com benefícios diretos para a saúde das pessoas e com vantagens econômicas para a comunidade local. Entretanto, é preciso fazer a gestão adequada do turismo para minimizar o impacto que o fluxo pode gerar no ambiente”, completa o diretor do UnB Cerrado, que orientou a pesquisa e coordena outras ações, em parceria com o parque, para monitorar o turismo na região.

 

Por ser uma reserva de proteção integral — onde é permitido somente o uso indireto dos recursos para fins como o turismo ecológico e a pesquisa científica, proibindo-se o consumo, a coleta ou o dano aos recursos naturais —, o parque tem importância fundamental para a manutenção da fauna da Chapada dos Veadeiros, em especial dos mamíferos de médio e grande porte. Essa população é estudada desde 2012 pelo Centro UnB Cerrado.

 

Uma das pesquisas em andamento visa monitorar o fluxo dos bichos no parque, em busca de informações como densidade populacional e hábitos das espécies. “Posicionamos as chamadas armadilhas fotográficas nas trilhas com visitação de turistas e em locais onde só transitam funcionários e pesquisadores autorizados. Esses equipamentos dispõem de sensores que detectam quando um animal está passando em sua frente e, então, fazem o registro fotográfico do momento”, explica Renata Oliveira Souza, mestranda pelo Centro de Desenvolvimento Sustentável (CDS) da UnB.

 

Coorientador da pesquisa, André Cunha explica que a região é importante para a gestão da fauna do Cerrado, pois ainda preserva grupos completos de mamíferos, como felinos, canídeos, veados. O pesquisador se preocupa com a acelerada perda de habitat que acontece no bioma, por causa da vegetação nativa convertida para outros tipos de uso, como a agricultura.

 

O PARQUE NACIONAL

 

Criado em 1961, com 625 mil hectares, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros sofreu sucessivas reduções de tamanho até que, no início dos anos 1980, chegou a 65 mil hectares, cerca de 10% da área original. Após anos de embates em diferentes esferas sociais, além de entraves jurídicos, em 2017, o governo federal decretou a ampliação da unidade para 240 mil hectares.

 

“Retomar a extensão do parque foi uma medida importante para a conservação do maior número possível de grupos biológicos, da paisagem e de processos ecológicos relacionados a serviços ecossistêmicos, como a polinização feita por insetos”, garante o biólogo e diretor do parque nacional, Fernando Tatagiba. Para reforçar a urgência da medida, ele alerta para substituição de ambientes naturais por grandes lavouras de monocultura, como milho, soja, eucalipto, que tem acontecido no eixo Chapada dos Veadeiros – Brasília.

 

Segundo o gestor, quase 500 nascentes passaram a ser conservadas na nova zona de abrangência da unidade. “Não existe água sem conservação. Para a água nascer ou correr de forma limpa, é preciso conservar a paisagem ao redor. Não basta conservar a nascente ou a calha do rio, ela precisa se infiltrar no solo para aflorar em uma nascente”, detalha o biólogo.

 

Em apelo à conservação, Tatagiba enfatiza: “Assim como não existe água sem conservação, não existe agricultura sem água”. Para além das necessidades humanas, ele lembra que “vivemos em um planeta com milhões de outras espécies, que não devem ser extintas em função do nosso padrão de ocupação e uso do planeta”.

 

PARCERIA EM PROL DA NATUREZA

 

Fruto de demanda da comunidade de Alto Paraíso e região, o Centro UnB Cerrado foi idealizado em 2005, durante as Conferências Estadual e Nacional do Meio Ambiente. Sua criação aconteceu em 2011. Desde então, o Centro tem fortalecido a parceria entre a Universidade e a comunidade local, imbuído da missão de apoiar o desenvolvimento sustentável e a conservação ambiental.

 

Centenas de jovens e famílias já foram contemplados pelos cursos de extensão ofertados pelo centro. A unidade também realiza atividades de ensino, como a oferta de disciplinas de verão para estudantes de graduação da UnB, além de projetos de pesquisa. Em 2017, o centro formou a primeira turma de pós-graduados, com a Especialização em Sociobiodiversidade e Sustentabilidade no Cerrado.

 

A unidade enfrenta o desafio de estar em um espaço provisório. O edifício sede foi construído com fomento da Prefeitura de Alto Paraíso de Goiás. Entretanto, em razão de impasses jurídicos relativos à execução da obra por parte do governo municipal, as instalações ainda não puderam ser repassadas à Universidade.

 

A questão é tratada no âmbito do governo municipal, sendo acompanhada com atenção pela administração superior da UnB. Parecer recente do Ministério Público aponta a viabilidade de entrega da obra e ocupação por parte da Universidade, enquanto o governo municipal segue nas tratativas jurídicas pendentes. “A principal meta da minha gestão é receber nosso edifício sede e estimular a UnB a usar da melhor maneira possível esse espaço”, afirma o diretor do centro, André Cunha.