Entrevista

A pressão pela mercantilização da educação por grandes grupos é forte. Quem afirma isso é o professor Nelson Cardoso Amaral que lembra que a gratuidade é um princípio constitucional, além de ser parte da tradição educacional

 

Texto Nair Rabelo

 

O financiamento da educação não é tema de entendimento simples e, por isso, há muitas meias verdades e análises mal-intencionadas circulando. Especialista no assunto, o professor Nelson Cardoso Amaral, autor dos livros Financiamento da Educação Superior: Estado X Mercado e Para Compreender o Financiamento da Educação Básica no Brasil, tem graduação e mestrado em Física, mas seu interesse pela área começou quando assumiu a Pró-Reitoria de Administração e Finanças da Universidade Federal de Goiás (UFG), no início da década de 1990.

 

Costuma-se dizer que o Brasil aplica o equivalente a 6,2% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e que os Estados Unidos, 5,3%. A conclusão apressada seria que o Brasil destina mais recursos que os EUA para esse setor. Fazendo as contas em US$/PPC – dólares corrigidos pelo Poder de Paridade de Compra – o professor da pós-graduação da UFG alerta: “O percentual de 6,2 sobre o PIB brasileiro significa US$/PPC 2.500 por pessoa de zero a 24 anos, enquanto 5,3% do PIB dos EUA totalizam US$/PPC 9.500 por indivíduo na mesma faixa etária. Portanto, os EUA investem muito mais em educação do que o Brasil”. 

 

Os estudos acadêmicos sobre o financiamento da educação ampliaram-se a partir da criação, em 1998, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que virou, em 2007, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). O Fundeb é um fundo especial e atende toda a educação básica, da creche ao ensino médio. Com vigência até 2020, ele tem âmbito estadual, com uma reserva por estado e Distrito Federal. Os recursos são provenientes de impostos e transferências dos entes federados e incrementam em dez vezes o volume anual da verba federal.

 

Debruçado sobre o tema em todos os níveis, etapas e modalidades e sobre as responsabilidades constitucionais da União, estados, Distrito Federal e municípios, Amaral acredita que o interesse pelo assunto na academia poderia ser maior. Houve uma expansão nos estudos a partir da discussão da meta 20 do Plano Nacional de Educação (PNE). Essa meta estabelece para o ano de 2024 a aplicação do equivalente a 10% do PIB em educação, desde o nível infantil até o superior. O professor da UFG acredita que é necessário reforçar os grupos de pesquisa já existentes que discutem a temática como um todo. 

“Vivemos um momento em que as universidades públicas estão sob tremendo ataque, em que imperam atitudes não científicas e anti-intelectualistas”, afirma ele. Entretanto, diz-se otimista sobre o futuro da educação superior brasileira. Nelson Cardoso Amaral falou com a revista Darcy sobre o financiamento das universidades públicas federais.

 

Darcy – Cobrar mensalidade nas universidades públicas resolveria o problema orçamentário dessas instituições?

Nelson Cardoso Amaral – A cobrança de mensalidades nos países em que ela ocorre não consegue atingir valores importantes no orçamento das universidades. O Banco Mundial postula que uma universidade deve obter, no máximo, 30% de seu orçamento por outros meios possíveis de arrecadação na sociedade, incluindo a cobrança de mensalidades. No Brasil, a gratuidade da educação pública é um princípio constitucional e é parte da tradição educacional do país. A existência desse princípio se fundamenta no fato de o país possuir uma renda per capita baixa, grande desigualdade social e regional, e enorme concentração de renda em apenas 5% da população. Por todos esses aspectos, a implantação de mensalidades na educação superior pública brasileira não seria uma tarefa simples. E cabe aqui uma pergunta: os valores obtidos com a arrecadação de mensalidades seriam acrescentados ao orçamento já existente ou este seria diminuído e o valor total seria inalterado? Esse fato já ocorreu quando a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) se dirigiu para a Saúde: os recursos existentes, de outras fontes, foram retirados, mantendo inalterados os valores totais aplicados na saúde.

 

Darcy – Quais seriam os impactos sociais se acabasse a gratuidade do acesso? 

NCA – Isso exigiria das famílias dispêndio em torno de 24% da renda bruta familiar para manter uma pessoa numa universidade federal. É um encargo familiar muito elevado para um país como o Brasil, que possui um conjunto de fatores que o diferencia de países em que há a cobrança de mensalidades. Temos um PIB que pode ser considerado grande, contudo, enorme assimetria regional, e um valor financeiro aplicado em educação, por pessoa em idade educacional, muito baixo. 

 

Darcy – O que aconteceu com países que adotaram a cobrança de mensalidades nas universidades públicas mais recentemente?

NCA – O Chile é exemplo de um país que se aventurou a cobrar mensalidades na educação superior e, exatamente por não possuir as condições adequadas para fazê-lo, hoje está envolto em uma grande crise para retornar à gratuidade. Esperamos que isso não seja implementado no Brasil. A educação superior aqui está intimamente interligada com o desenvolvimento da ciência e tecnologia por meio do desenvolvimento de pesquisas e da existência de um consistente sistema de pós-graduação. Uma crise nas instituições de educação superior inevitavelmente levaria a uma crise também no desenvolvimento da ciência e tecnologia do país.

 

Darcy É certo dizer que gastamos em demasia com o financiamento do ensino superior público?

NCA – O Brasil aplica em todo o seu processo educacional, desde a educação infantil até a educação superior, um valor baixo por pessoa em idade educacional (zero a 24 anos). Quando fazemos a comparação com membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), vemos que o Brasil aplica US$/PPC 2.525 por pessoa entre zero a 24 anos, enquanto o Chile chega a US$/PPC 3.935; a Coréia do Sul, US$/PPC 8.317; a Austrália, US$/PPC 9.280, e os Estados Unidos, US$/PPC 9.325. O que ocorre é que a maior diferença nos valores aplicados por pessoa em idade educacional está na educação básica e não na educação superior, gasto que não pode ser considerado em demasia. O volume de recursos na educação básica brasileira, adicionando-se os recursos financeiros aplicados pela União, estados, municípios e Distrito Federal, atingiu, em 2015, um valor equivalente a 4,9% do PIB, frente ao equivalente a 1,3% em educação superior – aí incluídos também os recursos aplicados nesse nível educacional pelos estados, municípios e pelo Distrito Federal. Para se ter uma ideia da dimensão dos valores financeiros aplicados em educação em todo o país, o valor do PIB em 2015 foi de R$ 5.904.331.214.709. Na educação básica foram aplicados R$ 289.312.229.521 (o equivalente a 4,9% do PIB) e na educação superior, R$ 76.756.305.791 (1,3% do PIB). Uma elevação maior dos recursos na educação básica ocorreu no período 2000–2015 e fez com que o valor médio aplicado por aluno matriculado nesse nível educacional passasse de R$ 2.534, em 2000, para R$ 7.575 em 2015, a preços de janeiro de 2019, corrigidos pelo IPCA. O valor aplicado por aluno na educação superior, nesse mesmo período, passou de R$ 27.675, em 2000, para R$ 27.561, em 2015, considerando a mesma correção para o mês de janeiro de 2019. Dessa forma, nota-se uma elevação real de 200,1% no valor aplicado por aluno na educação básica, enquanto o valor por aluno na educação superior permaneceu praticamente inalterado.

 

Darcy – Quais despesas estão incluídas no cálculo do valor aplicado por aluno na educação superior?

NCA – Esse cálculo não significa custo do aluno. Aí estão incluídos o pagamento de pessoal aposentado e pensionistas, todas as despesas realizadas com pesquisas, projetos de extensão e com a realização de serviços prestados pelas instituições. Houve, portanto, ao longo do tempo, um movimento de diminuição da distância entre valores por aluno na educação básica e na educação superior, sem que isso tenha representado uma redução nos valores investidos na educação superior pública. Essa trajetória precisaria ser continuada. É inadmissível que se promova a destruição da educação superior pública com a argumentação de que os recursos deveriam ser transferidos para a educação básica. Isso é fácil de se observar, uma vez que o valor por aluno nesse nível educacional sofreria apenas uma pequena elevação. Esperamos que mais esta insanidade não seja cometida na educação brasileira.

 

Darcy Existe de fato um sucateamento das federais?

NCA – As universidades federais cresceram muito no Brasil no período de 2005 a 2017. O aumento no quantitativo de estudantes foi de 100,9%, entre os de graduação, e 203,8%, entre os de pós-graduação stricto-sensu, e essas variações foram bem maiores que o aumento no quantitativo de professores, que foi de 82,1%. Sendo que docentes mestres e doutores aumentaram em 131,9%. Uma expansão dessa magnitude provoca muitas mudanças no ambiente universitário e dela despontam necessidades adicionais com relação à pesquisa e extensão, associadas ao aumento de pós-graduados. Aliando-se essas informações àquela da não variação dos valores aplicados por estudante, como já analisamos, pode-se concluir que o conjunto das universidades federais brasileiras elevou suas atividades de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão, aprimorando também seus componentes de custos, conseguindo elevar o grau de eficiência e eficácia na gestão, o que pode dar a sensação de sucateamento, uma expressão muito forte. O que se pode afirmar é que, desde 2014, está havendo uma compressão das verbas para o pagamento das despesas de manutenção, obras e equipamentos que culminou, neste ano de 2019, com o contingenciamento em torno de 30% desses recursos. Isso poderá inviabilizar o funcionamento das instituições pela impossibilidade de pagar fornecedores de água, luz, telefone, terceirizados, etc. Isso sim seria o sucateamento em sua dimensão mais elevada: a impossibilidade de continuar funcionando.

 

Darcy – Quais são os desafios das universidades em alcançar as metas do Plano Nacional de Educação 2014-2024?

NCA – A meta 12 do PNE estabelece que, daqui a cinco anos, o país deveria atingir, na educação superior, uma taxa bruta (razão entre o número total de matrículas, independente da faixa etária, e a população com idade prevista para este nível de ensino) de matrículas de 50%. A taxa líquida deverá ser de 33%, entendida como a razão entre as matrículas de alunos com idade prevista para estar cursando o nível de ensino e a população total na mesma faixa etária. Pelo menos 40% desta expansão deverá ser no segmento público. A meta 12 foca exclusivamente na graduação, assim sendo, corresponde à população entre 18 e 24 anos. Utilizando informações do Censo da Educação Superior de 2015 e da projeção da população realizada pelo IBGE até 2060, seria necessário haver expansão de matrículas para o cumprimento desta meta. Para atingir a taxa líquida de 33%, as matrículas dos jovens de 18 a 24 anos devem se ampliar de 4.074.044, em 2015, para 7.721.874, em 2024, um aumento de 90%; e para atingir uma taxa bruta de 50%, seria preciso atingir um total de 11.699.810 de matrículas, acréscimo de 46% em relação a 2015, quando eram 8.027.297 estudantes.

 

Darcy – E como fazer isso?

NCA – É preciso chamar a atenção para o fato de que a expansão de todas as matrículas precisa ocorrer simultaneamente, o que pode ampliar, ainda mais, a necessidade de novas matrículas em todas as idades. Nesse caso, a esfera federal terá que aumentar em 75% o número de matrículas, contando com o fato de que as esferas estaduais e municipais também façam um crescimento dessa magnitude. Será um enorme desafio atingir essa meta. Teríamos que promover uma nova expansão até 2024, praticamente equivalente àquela ocorrida de 2005 a 2017, como já analisamos, e isso somente seria possível a partir de um programa proposto pelo Governo Federal, fato que não é cogitado pelo atual governo. Não se conhece nenhuma proposta relativa às metas do PNE e, principalmente sobre a meta 20, com a ideia de elevação a 10% do PIB em educação. A própria Emenda Constitucional nº 95/2016 (emenda do teto dos gastos), que congelou os gastos do Poder Executivo até 2036, constitui-se em grave impedimento para que a situação seja alterada.

 

Darcy – As universidades sairão fortalecidas e mais integradas à sociedade? 

NCA – Com tantos ataques vindos de quem deveria valorizá-las – o MEC –, as universidades públicas perceberam a necessidade de se aproximar mais da sociedade e mostrar tudo o que fazem além de formar médicos, engenheiros, pedagogos, filósofos, cientistas. Elas estão realizando diversas atividades, mostrando os serviços que são prestados, as pesquisas que mudam a vida das pessoas, os projetos de extensão desenvolvidos e as especializações para os profissionais já formados. É por isso que afirmo que elas sairão revigoradas desse processo e com maior apoio da sociedade. Aqueles que acham que é possível destruí-las estão muito enganados.