DOSSIÊ

A pandemia de coronavírus que diariamente mata milhares de pessoas no país também forçou a educação brasileira a entrar em quarentena, levando a evasão escolar e prejuízos para os estudantes

 

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Foto: PixelsFusion3D / Canvas For Education

 

Texto: Carolina Pires

 

A pergunta do título não é apenas retórica. Na verdade, ela expressa como o ano de 2020 expôs as contradições da educação brasileira, que parece trazer mais dúvidas do que certezas, mais dilemas do que soluções. A pandemia de covid-19 e o isolamento social adotado como estratégia de combate à circulação do vírus Sars-Cov-2 impuseram mudanças para as quais o mundo precisou dar respostas rápidas, mas que o Brasil ainda tem dificuldades de acompanhar.

 

O cenário parece tornar cada vez mais utópico o preconizado pelo artigo 205 da Constituição Federal, no qual a educação é entendida como "direito de todos e dever do Estado e da família", e visa "ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".

 

Pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), de novembro de 2020, apontou que mais de 137 milhões de crianças e adolescentes na América Latina e no Caribe estão sendo diretamente afetadas pela interrupção das aulas. Houve aumento drástico, nos últimos meses, na porcentagem de crianças e adolescentes que não recebem nenhuma modalidade de educação formal na região, de 4% para 18%.

 

No Brasil, o ensino remoto nas escolas públicas e particulares do país foi autorizado pelo Ministério da Educação enquanto durar a pandemia de covid-19. Diante da medida emergencial, para o calendário escolar de 2021, algumas redes estaduais optaram pelo ensino exclusivamente remoto; outras adotaram algumas atividades presenciais, mantendo aulas a distância.

 

Apesar da oferta na modalidade remota, infelizmente, a realidade brasileira não está distante do quadro apontado pela Unicef. A supervisora pedagógica do Centro de Ensino Médio 03 de Taguatinga, no Distrito Federal, Teresa Janaina Almeida, relata que dos 1200 alunos da unidade, pelo menos 20% não conseguem sequer acompanhar as aulas remotas.

 

Além das dificuldades de acesso à internet, muitos estudantes precisaram trabalhar para ajudar com as despesas de casa, uma vez que a situação financeira de diversas famílias foi prejudicada pela pandemia. "A fila para buscar a cesta verde, criada para disponibilizar os alimentos que já haviam sido contratados pela Secretaria [de Educação do Distrito Federal], superava em muito àquela para pegar material impresso para os alunos", assegura Teresa Almeida.

 

Para a educadora, os danos já podem ser vistos, já que o mundo externo continua com as mesmas cobranças, o mercado busca profissionais capacitados, e a sociedade exige cada vez mais dos jovens. "Os certames seguem da mesa forma. O Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], por exemplo, não levou em consideração que os estudantes da terceira série tiveram essa perda, a avaliação não mudou", observa.

 

Solução emergencial

Para entender melhor como as secretarias estaduais e distrital de ensino adaptaram-se à nova dinâmica imposta pelo isolamento social, três professores da educação básica pesquisaram sobre a organização do trabalho escolar no contexto da covid-19. Eles são pós-graduandos da Universidade de Brasília (UnB) e integram o Grupo de Pesquisa em Ensino, Aprendizagem e Formação de Professores em Geografia (Geaf). O estudo foi consolidado no artigo O ensino remoto no Brasil em tempos de pandemia: diálogos acerca da qualidade e do direito e acesso à educação, publicado em agosto de 2020 na Revista Com Censo.

 

Coautor da pesquisa, o professor Leonardo Ferreira vê a iniciativa como forma de "denunciar um pouco da desigualdade ampliada numa proporção muito grande com a pandemia". Ele explica que o estudo confronta as ações anunciadas pelas redes públicas de ensino com a realidade estrutural do país, que muitas vezes não permite que os instrumentos adotados sejam factíveis. Para isso, foram utilizados dados do Censo Escolar e outros indicadores sociais.

 

A principal conclusão é que o ensino remoto é excludente e agrava a qualidade da educação pública e a desigualdade educacional, não garantindo os direitos fundamentais previstos legalmente. "Em situação normal, ir à escola é um obstáculo para muitos alunos. No ensino remoto, o desafio é estar conectado e conseguir fazer um trabalho minimamente qualitativo. Trata-se de um arranjo emergencial que surgiu de maneira apressada sem o devido planejamento", aponta.

 

A primeira questão que afeta diretamente a qualidade é o acesso. Segundo pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domicílios brasileiros, realizada pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic), apenas 37% dos domicílios no país possuem internet e computador.

 

Considerando que grande parte das estratégias são voltadas para o ensino em tecnologias digitais, via internet, é preocupante que apenas cinco das 27 unidades federativas tenham anunciado patrocínio de internet para os alunos que não a possuem: três da região Sudeste (Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo), uma do Sul (Paraná) e uma do Nordeste (Rio Grande do Norte).

 

"E como ficam os alunos que não têm os equipamentos tecnológicos para o acesso às aulas ou às atividades escolares?", questiona Alcinéia Silva, também coautora da investigação. De acordo com o relatório da Unicef, a falta de acesso à internet e/ou a equipamentos tecnológicos, além da necessidade de alguns alunos trabalharem para ajudar na renda familiar, aumentaram de modo significativo a evasão escolar.

 

A partir dos dados apresentados nesse relatório, a professora expõe que a situação atingiu principalmente os estudantes entre 6 e 17 anos que moram nas regiões Norte e Nordeste, sobretudo aqueles que são pobres, negros, indígenas e deficientes. "De modo geral, os problemas educacionais foram acentuados, e a disparidade socioeconômica brasileira tornou-se mais evidente no contexto pandêmico", reforça.

 

Citando Paulo Freire, Alcinéia Silva ressalta que o diálogo, o encontro e a troca socializadora juntamente com a mediação pedagógica do professor são fundamentais à aprendizagem e também ao desenvolvimento do aprendiz. "Sem isso, reconhecemos que a aprendizagem não se efetiva significativamente. E nesse cenário atual, tal troca, encontro, diálogo e mediação propiciados pela escola foram bastante limitados e até mesmo ausentes, prejudicando o processo educativo/formativo."

 

Em sua visão, algo positivo que se pode tirar do atual panorama é o fato de que pais, familiares e responsáveis das crianças e jovens, assim como a sociedade de forma geral, perceberam que a escola e o professor são insubstituíveis. Sobre a recomendação do Conselho Nacional de Educação, indicando aos responsáveis que acompanhem e orientem as atividades escolares dos menores de idade, a doutoranda em Geografia considera que a desigualdade é muito grande, em função das múltiplas realidades e contextos de vivência dos alunos.

 

"Muitos pais não têm condições para serem mediadores no processo formativo, seja em virtude do trabalho, da falta de instrução de alguns, de sua baixa escolaridade e até mesmo de serem analfabetos". Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a taxa de analfabetismo no país, da população a partir dos 15 anos, é de 6,8%. "Não tenho dúvidas que o ensino remoto agrava a desigualdade educacional no Brasil e os desafios enfrentados pela escola pública", lamenta.

 

Desmonte educacional

Com larga experiência na educação básica, a docente da Faculdade de Educação (FE) da UnB, Edileuza Fernandes avalia que já estava em processo o desmonte da educação antes da pandemia, que afeta tanto a escola pública, como também a privada de forma generalizada, mas em graus diferentes.

 

Como marco desse movimento de desmonte, ela cita a Emenda Constitucional n. 95 de 2016, que congelou por 20 anos os recursos públicos para a área de saúde e educação. "No campo educacional, já se estava inviabilizando projetos que visavam assegurar o cumprimento das políticas sociais e do plano nacional de educação." Ela menciona que o contingenciamento desvalorizou a profissão docente, com rebaixamento salarial e ausência de investimentos na política de formação continuada dos professores da educação básica.

 

Uma preocupação apontada pela especialista é o avanço de ideologias e políticas conservadoras que visam atacar as bases sociais e democráticas. Nesse sentido, a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um exemplo claro, uma vez que consolida uma "base padronizadora, homogeneizadora, aprovada com frágil participação e diálogo – tanto dos estudantes quanto dos educadores – e fortemente vinculada às avaliações externas, como uma forma de controlar e padronizar o trabalho docente e o conteúdo ofertado".

 

Outro cenário que ela considera ameaça à formação educacional de crianças e jovens está relacionado às tentativas de parlamentares, governos e grupos ultraconservadores de aprovar o programa Escola sem Partido. "Nós educadores consideramos uma afronta à liberdade, à dignidade humana, ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas."

 

"Essas são ações políticas anteriores à pandemia e que já revelavam uma concepção do projeto de educação básica do país na contramão da que é defendida por educadores, associações, universidades, pesquisadores, unidades representativas dos professores e estudantes de uma educação básica pública, gratuita, laica, emancipadora e de qualidade socialmente reverenciada", sintetiza.

 

Na perspectiva da pesquisadora, houve um "aproveitamento do contexto da pandemia por grupos ideológicos e econômicos que fazem suas investidas justamente quando o estado desinveste", aliado ao fato de que "os professores estão isolados e desmobilizados, e as redes de ensino ocupadas em viabilizar a oferta do ensino remoto aos estudantes".

 

Criado no início deste ano, o Observatório de Educação Básica (ObsEB) da FE da UnB é um espaço democrático, participativo e dialógico para fomentar a partilha de saberes, experiências e projetos em rede, reafirmando o compromisso com a educação básica, especialmente a pública. Como uma das coordenadoras, Edileuza Fernandes afirma que a expectativa é subsidiar políticas públicas no campo da educação.

 

Diante da crise sanitária de extrema gravidade, a educadora acredita que não é o momento para focar em resultados e testes de larga escala. O foco deveria estar no fortalecimento de diálogo com a comunidade escolar, construindo redes de apoio, e no desenvolvimento de trabalhos com projetos, em torno de problemas do cotidiano que os alunos estão vivenciando. "Deve-se respeitar o protagonismo dessas crianças e jovens, concebendo a educação como uma prática social mais ampla", problematiza.

 

O dilema da aprendizagem

Para analisar se os estudantes realmente estão aprendendo, um dos indicadores educacionais muito utilizado é a distorção idade-série, que se trata da defasagem entre a idade do aluno e a idade recomendada para a série que ele está cursando. É considerada defasagem idade-série quando essa diferença é de dois anos ou mais, representando atraso na trajetória escolar.

 

O levantamento mais recente do Censo Escolar da rede pública de ensino é de 2020, cuja primeira parte foi divulgada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) em março deste ano. Com informações coletadas que se referem ao contexto escolar antes da pandemia, a maior taxa de distorção idade-série está entre os alunos do sexo masculino, em todas as etapas do ensino.

 

A maior diferença de gênero foi constatada no sexto ano do ensino fundamental, em que a taxa de distorção idade-série é de 28,2% para o sexo masculino e de 16,8% para o feminino. A elevação na taxa de defasagem tem início a partir do terceiro ano do ensino fundamental, sendo mais alta no sétimo ano e no primeiro ano do ensino médio. A taxa alcança 22,7% das matrículas dos anos finais do ensino fundamental e 26,2% das matrículas do ensino médio.

 

Com uma centena de livros publicados e a experiência em política social, com ênfase em sociologia da educação, acumulada ao longo das últimas décadas, o professor emérito da UnB Pedro Demo já demarca sua posição e lugar de fala único, caracterizado por sua visão crítica e assertiva sobre a realidade educacional do país.

 

Ao abordar a questão da qualidade do ensino, o docente pondera: "o que está em jogo não é o ensino, mas a aprendizagem. A aprendizagem como está na escola hoje é um fiasco, sobretudo na pública". Para ele, o baixíssimo aprendizado já ocorria antes da interrupção das aulas presenciais e simplesmente permanece no modelo remoto. "O desafio, portanto, é o mesmo, apenas transferiu-se o mesmo esquema", alerta.

 

Para elucidar esse fenômeno que ele chama de efeito desaprendizagem, o sociólogo apresenta dados realmente alarmantes: "o aprendizado em matemática nos anos inicias do ensino fundamental é de 50%, baixando para 21% nos anos finais. Já no ensino médio, fica em torno de 9%. Em língua portuguesa, o efeito é parecido, mas em proporção um pouco menor".

 

O principal impasse que culmina nessa desaprendizagem está, sob sua ótica, na formação docente, que afeta não somente a rede pública, mas também a privada, à medida que o sistema reproduz um modelo tradicional que já não cabe para as gerações do novo século. A indicação do professor é recriar a escola, termo que consta até mesmo no texto conservador que consolidou a BNCC.

 

"Para recriar a escola é preciso reinventar o professor. Não podemos mais continuar com a escola que temos. Ela deve ser um lugar de invenção, aprendizagem, autonomia e não mera reprodução. Cerca de 80% dos alunos estão na rede pública e por isso a escola pública carrega esse ônus imenso. Daí a sua importância para a qualificação da democracia, da República e para a cidadania popular", compartilha o sociólogo e professor emérito da UnB, Pedro Demo.

Quanto à reinvenção da carreira dos professores, Pedro Demo sugere que comece valorizando e cuidando desse segmento que, longe de alguma culpa, também é vítima do sistema. "Aluno aprende bem com professor que aprende bem. É por esse motivo que muitos países exigem mestrado para dar aulas, como na Finlândia, em que todos precisam ser autor, cientista, pesquisador."