UnB participa de programa de proteção planetária da Nasa e identifica fungos resistentes a condições adversas, como gravidade zero e temperaturas extremas

 

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O helicóptero Ingenuity Mars foi a primeira aeronave a realizar um voo motorizado e controlado em outro planeta, em abril de 2021. É uma das unidades espaciais que passa pelos protocolos de descontaminação. Foto: Nasa/JPL

 

Texto: Marcela D’Alessandro

 

Dessecação, radiação ultravioleta e limpeza com aspirador, esfregão, detergentes e outros produtos químicos superfortes. Essas são algumas das opções utilizadas pela Nasa, a agência espacial estadunidense, para descontaminar aeronaves, sondas, cápsulas e outras unidades que vão em missão para o espaço e depois voltam à Terra.

 

Toda a operação de limpeza ocorre dentro de salas de montagem da agência espacial, chamadas de assembly facilities, onde só é permitida a entrada de pessoal especializado e com equipamento de proteção individual para evitar tanto o contágio dos colaboradores quanto qualquer contaminação com sujeira, partícula ou microrganismo das unidades que serão lançadas.

 

O objetivo é preservar a saúde e o bem-estar de astronautas que venham a utilizar esses módulos, garantir o bom funcionamento dos aparatos e, não menos importante, verificar a existência de novos seres vivos.

 

"Da mesma forma que a Nasa não quer que microrganismos [possíveis vidas extraterrestres, em nível microbiológico] entrem no planeta, ela também quer proteger [outros planetas] de seres que poderiam sair daqui e ir para lá", informa Marcus Teixeira, doutor em Ciências Biológicas pela Universidade de Brasília e professor visitante do Núcleo de Medicina Tropical.

 

Teixeira também é pesquisador associado da Universidade do Nordeste do Arizona (Northern Arizona University – NAU, EUA) e participa desde 2020 do Programa de Proteção Planetária da Nasa. Foi convidado por Kasthuri Venkateswaran (Venkat), um renomado microbiologista do Laboratório de Propulsão a Jato da agência espacial (Jet Propulsion Laboratory). O cientista de origem indiana é o responsável por fazer a caracterização dos microrganismos encontrados nas salas de montagem da Nasa.

 

>Confira a entrevista exclusiva de Venkat à Darcy

 

À época, Marcus Teixeira publicou um artigo em conjunto com outros pesquisadores estrangeiros sobre uma nova espécie de fungo (Parengyodontium americanum), morfologicamente semelhante ao causador da doença do tatu (Coccidioides), mas com algumas particularidades. No laboratório da Nasa, Venkat também analisava um isolado de fungo encontrado em uma das aeronaves utilizadas em missões espaciais, e julgava ser o mesmo P. americanum do artigo de Teixeira.

 

Para investigar se sua suspeita estaria correta, Venkat entrou em contato com Paul Keim, outro autor do trabalho e líder do Instituto de Patógenos e Microbioma da Universidade do Nordeste do Arizona. A demanda acabou chegando até Marcus Teixeira, que aceitou a proposta. Juntos, e com mais nove pesquisadores, perceberam que se tratava de mais uma descoberta: outra espécie do gênero, denominada desta vez de Parengyodontium torokii.

 

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 Professor Marcus Teixeira com uma amostra de fungo leveduriforme semelhante a espécies encontradas em Marte. Foto: Raquel Aviani/Secom UnB.

 

"O Parengyodontium torokii foi isolado de uma dessas salas de limpeza. Eles fazem alguns testes: bombardeiam o fungo com luz ionizante UV, simulam radiação e gravidade no laboratório. Como você consegue provar e identificar quais são os mecanismos microbiológicos que causam essa resistência? O que esse fungo faz ou produz que consegue torná-lo persistente a esses tratamentos?", provoca o professor visitante da UnB

 

O grupo de pesquisadores descobriu ainda que o novo microrganismo produz uma matriz extracelular composta de polissacarídeos (açúcares). Quando o P. torokii se multiplica e cada um deles secreta essa matriz de açúcares no meio em que estão – na superfície da aeronave, por exemplo –, forma-se uma camada espessa entre os fungos, conhecida como biofilme e bastante perigosa para os astronautas.

 

"Normalmente, podem ser biofilmes mistos entre bactérias e fungos, só de fungos ou só de bactérias. Eles secretam isso no meio, o que permite que eles cresçam aderidos e formem ali um grande agregado de microrganismos crescendo em conjunto. Isso é um problema sério. Impede, por exemplo, a ação de drogas e de detergentes, porque os fungos vão se encapsular e crescer dentro dessa matriz polissacarídica", explica.

 

"Se tem um duto que vai alimentar o oxigênio ou a água, alguma substância vital ou um óleo para o bom funcionamento da estação espacial, e aquilo entupir com um microrganismo, é um problema sério, porque isso vai gerar um reparo. E tudo o que é feito a milhares e milhares de quilômetros da Terra é um pouco mais complicado", exemplifica o docente da UnB.

 

Para evitar que isso aconteça, boa parte das naves utilizadas em missões espaciais têm revestimento interno de teflon, justamente por ser um material antiaderente. Mas o Parengyodontium torokii é capaz de se fixar ali e se multiplicar mesmo assim, protegido pela alta densidade celular do biofilme produzido. "É um problema seríssimo", reforça.

 

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Cryptococcus, fungo semelhante a espécies filamentosas encontradas em Marte. Imagem: Raquel Aviani/Secom UnB.

 

A CIÊNCIA NÃO PARA

 

Enquanto os achados se tornam conhecidos por meio da publicação de artigos científicos para que pesquisas complementares se somem a eles, os estudos voltados para a caracterização de novas espécies fúngicas isoladas nas salas de montagem da Nasa seguem a todo vapor.

 

Após a experiência comum da descoberta do P. torokii, o professor Marcus Teixeira e o microbiologista Venkat pactuaram o desafio de analisar cerca de 70 cepas de isolados fúngicos encontrados em aeronaves, sondas, cápsulas espaciais e rovers – robôs construídos para explorar ambientes fora da Terra. Hoje, mais da metade delas já foi caracterizada.

 

Os pesquisadores verificam o DNA dos microrganismos e examinam a parte genotípica (composição genética) e fenotípica (características mais facilmente observáveis) de cada um deles. Por meio do sistema de taxonomia polifásica, que considera aspectos micro e macrobiológicos do fungo, observam ainda aspectos bioquímicos e genômicos. Eles também testam determinados compostos a fim de perceber se há degradação de açúcares, por exemplo.

 

"Já temos o genoma de todas essas cepas sequenciados. Mas fazer a caracterização genética hoje é mais fácil do que fazer a caracterização microbiológica. Extraímos o DNA, colocamos no sequenciador de DNA, que dá os resultados do genoma completo. O que eu faço é exatamente analisar e interpretar os resultados da máquina para saber qual o significado desses dados, tanto evolutivo quanto biológico. Quero saber o que essa cepa é capaz de metabolizar e o quão semelhante ou diferente é das outras cepas [já descritas]", detalha Teixeira.

 

Algumas das 70 cepas analisadas tinham nível mínimo de identidade com as depositadas nos bancos de dados de informações biotecnológicas e genômicas. Isso significa que eram espécies totalmente novas.

 

"Enquanto algumas espécies têm cerca de 99%, 98% de seu DNA semelhante ao de outros indivíduos conhecidos, outras tinham 90%, 89% de similaridade com o que estava no banco, ou seja, completamente desconhecidas até agora", revela. Segundo ele, essa diferença de dez por cento é significativa na avaliação de novas espécies ou gêneros.

 

 

RESISTÊNCIA

 

Um dos novos gêneros descobertos a partir dos isolados das unidades de exploração espacial que vieram de Marte foi batizado de Floridaphiala radiotolerans. O nome científico dá a dica de onde os fungos foram encontrados (na Flórida, onde também fica a Estação da Força Espacial de Cabo Canaveral, base estadunidense para lançamento de foguetes e cápsulas) e o que eles têm de diferente: são tolerantes à radiação ultravioleta – radio (radiação) + tolerans (tolerância).

 

Outra nova espécie identificada com essa característica é a Aaosphaeria pasadenensis, encontrada em Pasadena, cidade da Califórnia (EUA), onde está o Laboratório de Propulsão a Jato da Nasa.

 

"Essas cepas suportam uma radiação muitíssimo alta", afirma Marcus Teixeira. Ele destaca que ambos os fungos se mostraram resistentes à luz ultravioleta-C, amplamente utilizada como germicida e esterilizante por ser capaz de impedir a reprodução de microrganismos como vírus, bactérias e fungos.

 

Dentro de outro gênero (Pasadenomyces melaninifex), identificado no mesmo programa de proteção planetária da Nasa, os fungos produzem uma pigmentação chamada melanina, responsável pela coloração característica dos conhecidos fungos negros.

 

"Qual é a função da melanina na nossa pele? Basicamente, é proteger contra a radiação. Ela consegue nos proteger mais ou menos da radiação solar e evitar danos ao DNA da célula. Esses fungos são tolerantes à radiação, ou seja, você bota radiação super alta em condições até espaciais [no laboratório] e não acontece nada com os fungos", descreve o pesquisador da UnB. Outra curiosidade sobre os fungos negros é sua capacidade de utilizar a alta radiação a seu favor para produzir energia.

 

"Eles foram as únicas formas de vida encontradas nos reatores de Chernobyl", revela Teixeira fazendo referência à explosão nuclear na usina localizada na Ucrânia soviética, em 1986, e que deixou mais de 8 milhões de pessoas expostas à radiação. "Nos experimentos, eles viram que, na verdade, esses fungos usam essa radiação UV para produzir energia. Conseguem capturar a energia da radiação e conseguem sobreviver nisso."

 

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Imagem de microscópio mostra fungos do gênero Naganishia. Eles se desenvolvem em forma de levedura. Imagem: Secom UnB

 

Em recente artigo científico publicado em revista internacional, Venkat, Teixeira e outros colaboradores trazem um gênero novo de fungos que se desenvolvem em forma de levedura (os demais são fungos filamentosos) e são capazes de sobreviver dessecados, sem água, por anos. Quando se reidratam, conseguem reativar seu metabolismo. É o Naganishia, que se mostrou ainda tolerante à gravidade.

 

"Existem equipamentos de laboratório que simulam a gravidade. Imagine algo super-resistente à gravidade que pode formar biofilme e afetar a vida dos astronautas, por exemplo. E que não se consegue descontaminar por nada nesse mundo. Quais as diretrizes que a Nasa tem que tomar, então, para lidar com esse tipo de situação?", reflete Marcus Teixeira.

 

DEVER CIENTÍFICO

 

Apesar de ressaltar as características diferentes e desafiadoras desses novos seres classificados como extremófilos, ou seja, que sobrevivem em condições extremamente adversas como as descritas acima, o professor do Núcleo de Medicina Tropical da UnB reforça que é importante tentar encontrar o lado bom das descobertas.

 

Afinal, alguns desses microrganismos causam doenças, mas muitos podem posteriormente ser usados na criação de produtos inovadores ou de novos medicamentos. Foi o caso do cogumelo alucinógeno ergot, que produz uma substância (psilocibina) para o tratamento de depressão; do Aspergillus terreus, produtor de compostos (lovastatina e rosuvastatina) empregados em fármacos para o controle de colesterol; e do fungo Penicillium, que deu origem à penicilina, mundialmente utilizada como antibiótico.

 

"A gente não pode pensar só na ameaça desses microrganismos, muitos podem ser benéficos para a saúde humana e animal. Então, esse é o trabalho dos cientistas, dos pesquisadores: ir atrás e antever problemas que podem ser de grande relevância para a saúde pública", conclui Teixeira.

 

Hoje já existem muitos fungos conhecidos que são usados para bioprospecção, pesquisa em busca de processos biológicos ou partes provenientes de organismos que tenham aplicação em saúde, saneamento ou indústria; para a biorremediação, uso de microrganismos para limpeza ou descontaminação de áreas ambientais afetadas por poluentes diversos; ou mesmo para a produção de biocombustíveis.

 

> Confira abaixo o vídeo da Nasa sobre o Programa de Proteção Planetária. Nas configurações do vídeo, há opção para ativar a legenda com tradução simultânea para o Português.

 

 

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Marcus Teixeira é professor visitante do Núcleo de Medicina Tropical da UnB, pesquisador associado na Universidade do Nordeste do Arizona e participa desde 2020 do Programa de Proteção Planetária da Nasa. Formado em Biologia pelo Centro Universitário de Brasília, cursou mestrado em Patologia Molecular e doutorado em Biologia Molecular na UnB.

 

 

Título do artigo: Caracterização genômica e de tolerância à radiação de Naganishia kalamii sp. nov. e Cystobasidium onofrii sp. nov. das salas de montagem de missões enviadas a Marte em 2020 (tradução)  

Onde foi publicado: International Mycological Association (IMA fungus)