Reportagem

Projeto de extensão da UnB testemunha a luta de populações para sobreviver na maior floresta tropical do mundo. Repórter da Darcy, que acompanhou de perto a expedição, retrata em texto e em série de podcasts (links ao final da matéria) o encontro da academia com os povos da Amazônia

 

O intercâmbio de experiências e saberes com comunidades tradicionais, extrativistas, quilombolas, indígenas, camponesas e assentadas possibilita aos estudantes a construção de outras percepções sobre a Amazônia. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Viagem a uma Amazônia desconhecida é o sétimo texto do novo projeto.

 

Texto Serena Veloso 

 

Sete de dezembro de 2019. Na Travessa Mauriti, em Belém (PA), mochilas e malas abertas tomam conta das calçadas. Em frente a um ônibus de viagem fretado, 37 estudantes de graduação da Universidade de Brasília reorganizam suas bagagens para seguir até o porto Bom Jesus, onde pegarão um barco rumo à Breves, município paraense situado na Ilha do Marajó.

 

Assim começava mais um itinerário da quarta edição da Vivência Amazônica. Vinculado ao Núcleo de Estudos Amazônicos (Neaz) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares (Ceam/UnB), o projeto de extensão da UnB busca aproximar a comunidade acadêmica da realidade da Amazônia. Durante 21 dias, estudantes, docentes e técnicos administrativos da UnB foram ao encontro dos povos da floresta que habitam as regiões Norte e Nordeste do país. Revista Darcy e UnBTV acompanharam a jornada.

  

Uma das responsáveis por conduzir o grupo é a professora Enaile Iadanza, ligada ao (Neaz). Ela repassa as orientações: “Temos 15 minutos para separar uma muda de roupas para os quatro dias que passaremos em Breves.”

 

Sob chuva fina, vestes se espalham pelo chão e são inseridas rapidamente em mochilas, junto com outros itens indispensáveis ao itinerário, como redes, sacos de dormir e botinas. No olhar dos universitários, a fadiga devido a noites mal dormidas em ônibus, acomodações simples (muitas vezes precárias) e agenda apertada de atividades. Ainda assim, não escondem a satisfação em fazer parte de experiência transformadora, em contato com as entranhas de um Brasil invisibilizado.

 

Na estrada há uma semana, o grupo já havia percorrido mais de 2.600 quilômetros de Brasília até a capital paraense, passando por seis municípios do Tocantins, Maranhão e Pará. Da estadia em cada local, colecionavam aprendizados pela interação com comunidades quilombolas, extrativistas e assentadas.

 

Os  participantes estiveram, durante 21 dias, em quatro estados da Amazônia Legal. Em parte do período, um ônibus fretado se tornou segundo lar dos viajantes. Foto: Serena Veloso/Secom UnB 

 

No povoado de Sete Barracas (TO) e na Reserva Extrativista Ciriaco (MA), conheceram o ofício das quebradeiras de coco. Na comunidade maranhense de Mamuma, viram a resistência dos quilombolas afetados pela instalação do Centro de Lançamentos de Alcântara. A luta pela terra e pela preservação ambiental encabeçada pelo Assentamento João Batista II, próximo à cidade de Castanhal (PA), também deixou reflexões sobre a força dos movimentos sociais.

 

Expandir os horizontes dos conhecimentos acadêmicos, a partir da troca de experiências com as populações que habitam a Amazônia e sobrevivem de seus recursos sem devastá-la, é oportunidade ímpar para quem acompanha a aventura. As conexões com os territórios possibilitam a descoberta da floresta em sua pluralidade. 

 

Da terra para a água: depois de rodarem mais de 2.600 quilômetros de estradas, em uma semana, os universitários se encontraram com as águas do rio Guamá, em Belém (PA), para chegar à Ilha do Marajó, só acessada por barco. Foto: Serena Veloso/Secom UnB

 

Brasileiros invisíveis 

A chamada Amazônia Legal – conceito instituído em 1953 pelo governo federal para efeito de planejamento social e econômico da região – possui mais de 5,2 milhões de hectares e abrange nove estados: Acre, Amazonas, Roraima, Amapá, Pará, Rondônia, Tocantins e Maranhão. Corresponde a 61% do território nacional. 

 

A Amazônia é a maior e mais diversa floresta tropical do mundo. Além do mosaico de matas, rios e paisagens naturais, populações com culturas diversas dão vida ao ecossistema. Elas existem e resistem, ao longo de séculos, à destruição da natureza ocasionada por incêndios, expansão das fronteiras agrícolas, mineração, extração da madeira e outras atividades econômicas de impacto.

 

Para se ter ideia, o desmatamento na Amazônia cresceu 85,3% em 2019 na comparação com o ano anterior (2018), segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram 9.165,6 quilômetros quadrados de floresta devastados, de acordo com o Sistema de Detecção do Desmatamento na Amazônia Legal em Tempo Real (Deter).

 

O bioma é um regulador fundamental para os mais diversos sistemas vivos do planeta. As árvores da floresta absorvem aproximadamente 2 bilhões de toneladas de dióxido de carbono por ano e mandam para a atmosfera 20% do oxigênio do planeta.

 

O conceito de Amazônia Legal foi instituído em 1953 pelo governo federal para efeito de planejamento social e econômico da região. Infográfico: Francisco George/Secom UnB

 

Mergulhar nas histórias das populações que vivem nesta região, compreender suas mazelas e observar as potencialidades de seus modos de vida e a relação mantida com o bioma, é o que impulsiona o projeto da UnB. Coordenador do Neaz, o professor Manoel de Andrade define a experiência como um “exercício de redução do estranhamento”, pelo qual os estudantes “se deparam com outras realidades e desafios e voltam mais interessados pela Amazônia”.

 

Ele vê ainda a possibilidade de a Universidade se inserir nas agendas de interesse nacional e internacional, por meio do intercâmbio científico. “É importante termos a possibilidade de fazer algo mais prático na região, para que a UnB tenha mais opinião sobre a Amazônia. Ela é um patrimônio do Brasil e do mundo”, defende o docente.

 

Rumo ao Marajó

Ao chegar ao porto Bom Jesus, em Belém, a correria é grande para a saída à Breves. O principal município de Marajó – maior ilha fluviomarinha do mundo – só é acessado por barco. São 12 horas de viagem, iniciada ao pôr do sol. No caminho, a imensidão das águas do Rio Guamá impressiona por sua imponência. 

 

Uma embarcação azul e branca, com três andares e convés superior, acomoda estudantes, técnicos e docentes, além dos demais usuários do transporte coletivo. Poucas cabines com leitos oferecem comodidade para quem paga valor maior pelo deslocamento. A maior parte dos passageiros, no entanto, pernoita em redes, e para os universitários não seria diferente. 

 

 As consequências da exploração da madeira, uma das principais atividades econômicas na região de florestas do Marajó, são drásticas: vão desde impactos ambientais até a desarticulação socialFoto: Serena Veloso/Secom UnB

 

O grupo comemora a possibilidade de um bom banho, mesmo que em banheiros minúsculos e desconfortáveis. É preciso aproveitar bem as noites de sono, pois, como adverte um dos estudantes “os dias aqui duram uma eternidade”.

 

Viver em comunidade

Um barulho alto de buzina ressoa pelo barco e desperta os passageiros. O som anuncia a chegada à Breves. São 6h30. Hora de organizar os pertences e deixar a embarcação. A acolhida na cidade ocorre no Centro de Treinamento Tagaste, onde está a Prelazia do Marajó – refúgio negociado em diálogo com lideranças religiosas. Enquanto o café da manhã é servido, os extensionistas se instalam nos alojamentos, separados entre feminino e masculino.

 

Com redes atadas nos dormitórios, bagagem despejada e fome saciada, eles se aprontam para imergir no cotidiano marajoara. Acompanhar a Vivência demanda fôlego. Acordar cedo; organizar as refeições do dia; fazer a limpeza de suas acomodações; mobilizar a equipe para as saídas a campo; checar o roteiro e os próximos passos da viagem; contabilizar as finanças; coletar informações sobre as populações, seus territórios e modos de vida; registrar a passagem pelos locais. 

 

Estudantes conversam com enfermeira de posto de saúde de uma das vilas ribeirinhas do município de Breves (PA). Foto: Serena Veloso/Secom UnB 

 

Cada tarefa é dividida de forma igualitária entre os participantes, que se organizam em comissões rotativas para dar conta de todas as demandas diárias. O cansaço no fim do dia é inevitável. Ainda assim, a intensa rotina desperta o senso de cooperação e fortalece os laços afetivos. 

 

“Cria-se uma microssociedade que aprende a trabalhar junta para, quando sair dessa experiência, conseguir passar isso para o mundo”, endossa Pedro Saliba, no quarto período do curso de Audiovisual da UnB. O jovem de 20 anos acredita que o crescimento pessoal e coletivo alcançado ultrapassa as lições oferecidas pelos currículos acadêmicos.

 

União e coletividade são diferenciais que, na visão da professora Enaile Iadanza, contribuem para promover uma formação mais humana. “São 21 dias grudados um com o outro. É fundamental para o futuro deles compreender esse outro, ver que existem diferenças e que temos que respeitá-las”, frisa. 

 

Os momentos de risos, brincadeiras e partilhas, tão presentes na rotina desses jovens, são também de ensinamentos enquanto cidadãos e futuros profissionais. Por outro lado, a lida com adversidades comuns à realidade dos povos visitados, como tomar banho de cuia, usar banheiros com fossa, dormir em redes e ter horários mais restritos de alimentação, corroboram para dimensionar um Brasil desconhecido pelos acadêmicos. 

 

Marajó desigual

De um lado, belas praias de água doce e salgada, diversidade de espécies vegetais, criações de búfalo e herança cultural dos povos indígenas, primeiros habitantes da região. De outro, florestas densas e úmidas, comunidades distantes cujos modos de vida são orientados pela dinâmica das águas e problemas sociais diversos. Esse é um breve retrato do Marajó.

 

Nos 16 municípios e mais de 2.500 ilhas que compõem o arquipélago, direitos básicos, como saúde e educação, são deficitários. A falta de saneamento afeta a qualidade de vida da população. Os deslocamentos para diversos municípios dependem de transporte hidroviário, mas o monopólio na oferta precariza e encarece o serviço. 

 

Ali está o município com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil: Melgaço, que tem quase 24 mil habitantes e metade da população analfabeta. Conflitos por terra, tráfico de mulheres, exploração do trabalho e prostituição infanto-juvenil são outras violações frequentes relatadas pelos marajoaras. Para piorar o cenário, outro vilão assombra a população: a exploração desenfreada dos recursos naturais.

 

Prelúdio da Vivência 

O projeto de extensão é desenvolvido desde 2016 como currículo da disciplina Tópicos Especiais sobre a Amazônia. A matéria é aberta a graduandos de diferentes cursos e aborda as particularidades da Amazônia brasileira e continental, em diálogo com movimentos sociais e especialistas.

 

A constatação de que poucos estudantes das turmas já haviam visitado a região foi o motivador para a idealização da Vivência. “O objetivo é mostrar que existe gente na Amazônia e que esses povos sobrevivem em lógica diferente da existente na cidade, com luta e resistência, porque são excluídos”, acrescenta Enaile Iadanza.

 

A construção da viagem leva quase um ano. Parte do processo é realizada nas aulas da disciplina Tópicos Especiais sobre a Amazônia. Os conteúdos ministrados dão o aporte necessário para a escolha do itinerário.

Percursos e pontos de acolhida são definidos em diálogo com instituições de ensino, entidades, movimentos sociais e comunidades do território amazônico. Outros detalhes são considerados nos preparativos, como deslocamento, finanças, alimentação, promoção à saúde e ações a serem desenvolvidas nas comunidades. Tudo é pensado coletivamente pelos estudantes, com o suporte dos docentes.

 

Para facilitar o trabalho, eles se dividem em comissões que atuam antes e durante a expedição. A cada edição, os discentes arrecadam fundos para cobrir as despesas de todos os participantes com alimentação e outras necessidades. A Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária (FAV) garante o transporte, que é o maior custo da viagem.

 

Para escutar

A Darcy lança, nesta terça-feira (21), uma novidade para acompanhar as matérias sobre a Vivência Amazônica. É o podcast Amazônia Além da Floresta, uma série de quatro episódios que trará mais detalhes sobre a viagem realizada pelo projeto de extensão do Neaz, em 2019, à floresta mais biodiversa do mundo.

 

O ouvinte poderá conhecer ainda mais a realidade de alguns dos povos ribeirinhos, camponeses e assentados visitados pelos integrantes da Vivência, além de ter um panorama sobre a atual situação da Amazônia. O impacto do avanço da covid-19 nessas comunidades também será assunto em destaque. Confira o primeiro episódio, disponível no Spotify e no Soundcloud.

 

>> Não perca, semana que vem, aqui no site da Darcy, a segunda parte da reportagem que acompanhou o projeto de extensão da UnB Vivência Amazônica.