DOSSIÊ

Experiências passadas mostram como educação, articulação e informação ajudaram no combate a doenças, seja para descobrir agentes causadores, tratamentos ou formas de mitigar danos

 

 

 

 

Texto Raíssa Gomes e Thaíse Torres

 

Epidemias têm muito a ensinar. A de cólera, que surgiu no século 18 na Europa, serviu de base para a epidemiologia, ciência que busca compreender o processo de saúde-doença em populações. Não foi evidente descobrir o agente causador da enfermidade que matou cerca de 1 milhão de pessoas, principalmente na Inglaterra e Índia. Mas um observador médico, John Snow, percebeu que havia concentração de casos e óbitos em uma área que recebia água de um dos reservatórios de Londres. Investigar os indícios que a cólera deixava contribuiu para a descoberta de suas causas. 

 

De acordo com o epidemiologista e sanitarista Pedro Tauil, esse é um dos maiores exemplos de como uma pandemia pode trazer conhecimento. “Esse caso trouxe elementos suficientes para exercermos controle, mesmo sem sabermos os agentes causadores. A lição permanece”, sugere o professor emérito da UnB. Docente aposentado do Núcleo de Medicina Tropical, ele acumula mais de 50 anos de experiência na área e testemunhou, ao longo de sua carreira, surtos epidêmicos e epidemias de dengue, malária, doença de Chagas, HIV e outras. 

 

Para ele, no entanto, o principal perigo que se enfrenta hoje é a desinformação. “Em especial, a posição de pesquisadores que defendem ser um absurdo vacinar pessoas. É um problema de crença na principal medida em saúde pública no que se refere ao custo-benefício”, pondera.

 

A necessidade da educação é outro dos grandes aprendizados deixados pelos desenrolares epidêmicos que as sociedades enfrentaram. “Sem o processo educativo, sem as pessoas saberem como a doença se transmite e o que fazer para evitar a transmissão com os recursos disponíveis, não se consegue nada”, resume Tauil. 

 

A pesquisadora colaboradora sênior do Departamento de Geografia da UnB Marília Peluso concorda e acrescenta que é preciso se atentar ainda à linguagem do que é comunicado à população durante crises sanitárias e também fora delas: “Na escola, tem a resposta, mas, ao chegar em casa, é outra coisa. Como fazer para adequar o conteúdo à realidade? As linguagens podem ser diferentes e é preciso adaptar, de maneira que a informação faça sentido para aquela população”, opina. 

 

Nesse processo, encontram-se tanto as campanhas educativas feitas por governos, como os agentes de saúde que ajudaram a diminuir significativamente, por exemplo, casos de malária em Porto Nacional, no estado de Tocantins, onde Pedro Tauil atuou. Além disso, é preciso ainda investir na formação de professores locais, que possam ensinar sobre as doenças de uma forma que faça sentido em cada localidade, de acordo com Marília Peluso.

 

Aprendizados do pesquisador 

Para a professora do Departamento de Antropologia Soraya Fleischer, um dos principais legados deixados pelas epidemias é o questionamento do papel do próprio pesquisador. Especialista em Antropologia da Saúde, Soraya esteve em campo durante a epidemia do zika vírus em 2016. “Sentíamos muita instabilidade como pesquisadores, uma vez que não sabíamos ainda como era a situação”, recorda. 

 

A experiência fez a docente levantar novas questões, determinantes para o desenho metodológico de futuras pesquisas. “Acho importante falar dos riscos para as pesquisadoras. Ainda mais no meu caso, pois trabalho quase somente com mulheres”, diz, referindo-se a uma epidemia que afetou principalmente gestantes. 

 

Ela recorda que, na época, o trabalho de campo enfrentou, ao mesmo tempo, certa tranquilidade e muito medo. Tranquilidade de saber que, apesar da instabilidade do conhecimento “normal surge  uma nova doença”, as pesquisadoras não eram vetores de transmissão da doença para seus interlocutores – o transmissor (vetor) do zika vírus é o mosquito Aedes aegypti. Mas permanecia a angústia do que estava por vir. “Mas e o futuro? Quanto tempo o vírus permanece no organismo? E as pesquisadoras que ainda serão mães? Essas são algumas das repercussões que o estudo gerou para a ciência da Antropologia”, afirma. 

 

Como pesquisadora do ramo da saúde na Antropologia, Soraya destaca que busca sempre observar os efeitos sociais de uma pandemia. Suas inquietações trazidas pelo trabalho de campo demonstram como esses impactos estão presentes para pesquisadores e interlocutores. No caso da epidemia de zika vírus, era forte a preocupação com a vida humana e sua construção como sentido social.

 

A valorização da vida humana também é uma das questões-chave trazidas por Marília Peluso ao olhar para epidemias. A geógrafa lembra que a mudança de mentalidade, que passou a valorizar a saúde e buscar formas de cura – no lugar de aceitar doenças como castigos divinos –, representa um grande passo para o investimento em pesquisas, a exemplo do desenvolvimento das vacinas.

 

A busca científica por causas e vetores das doenças torna-se um ponto chave. “Por conta disso, também passamos a ter mais cuidado com a vida humana. Acho que esta é uma questão essencial na pandemia atual: o interesse em manter as pessoas vivas. Há maior respeito pela vida visto que podemos salvá-la”, explica Marília.

 

O respeito pela vida é um dos motivos que leva Soraya a repensar a ida à campo para dar continuidade ao trabalho sobre a epidemia de zika. “Hoje, vivemos a pandemia de covid-19. Todo mundo é mais passível de se contaminar, pois tem o agravante de sermos todos vetores da doença, inclusive para aquelas crianças, imunodeprimidas, com fragilidades respiratória e pulmonar grandes. Voltamos também à questão da instabilidade, já que não sabemos o potencial de transmissão de uma pessoa assintomática”, revela, referindo-se às crianças acometidas pela síndrome congênita do vírus zika (SCZ), doença que causa microcefalia (cabeça diminuta), desenvolvimento inadequado da massa encefálica, além de complicações neurais.

 

Pesquisas realizadas durante epidemias também são apontadas pelo professor Pedro Monteiro como um ponto essencial para o avanço científico que deixa grandes legados para a sociedade. O docente do Departamento de Enfermagem da UnB foi o pesquisador responsável por descobrir que, no caso da doença de Chagas, o Trypanosoma cruzi, protozoário que causa a doença, infectava as pessoas por meio de barbeiros que não viviam nas moradias. Ao contrário do Triatoma Infestans, tipo mais comum de barbeiro, que transmitia a doença, mas foi eliminado do Brasil. A pesquisa resultou no trabalho Dinâmica de transmissão de protozoários cinetoplastidas para a população humana. 

 

“Na época, eu identifiquei que eles frequentavam as casas, mas não moravam nelas. Eles viviam nas palmeiras de coco babaçu e, à noite, desciam para as casas e contaminavam os moradores”, relembra o pesquisador, que examinou mais de 25 mil pessoas para a pesquisa.

 

Pode-se dizer que o mesmo processo de descobertas graças a inúmeras pesquisas aconteceu com a epidemia de HIV/Aids. 

 

Desde seu descobrimento no início da década de 1980, a construção do conhecimento sobre o vírus da imunodeficiência humana (HIV) e a doença causada por ele (a síndrome da imunodeficiência adquirida/Aids) levou tempo até chegar ao atual estado solidificado de informações sobre mecanismos de prevenção e tratamento.

 

“Se eu tenho uma doença, como evitar propagá-la? Esta é a mensagem dirigida a quem tem a enfermidade. Temos que pensar também na mensagem adequada para quem não tem”, explica Pedro Monteiro. Segundo ele, uma das consequências do trabalho com saúde pública é a aplicação do conhecimento disponível para determinadas doenças.

 

Para a doutora em Saúde Pública Susana Pasternak, um dos grandes legados da epidemia de HIV é a mudança do comportamento sexual, com um maior uso dos preservativos. Mas destaca que a epidemia passa agora por grandes desafios, por conta das novas gerações. “A Aids se controlou bastante aqui no Brasil, graças a ações públicas de controle, distribuição pública de remédios e preservativos. Houve mudança de comportamento sexual e o uso de preservativo ficou mais forte. Porém, como a doença está mais controlada, as novas gerações têm relaxado mais”, alerta.

 

Políticas de saúde

Controlar o contágio de endemias em um país da extensão territorial do Brasil sempre foi um desafio. Nesse contexto, está a criação da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) na década de 1970. Os chamados Guardas da Sucam percorreram todo o interior do país, até áreas mais remotas, com o objetivo de controlar ou erradicar grandes endemias. Foram desenvolvidos quatro programas de controle de doenças para Chagas, malária, esquistossomose e febre amarela.

 

A partir deste modelo de ação, surgiram os agentes de combate a endemias e também os agentes comunitários de saúde, presentes na estrutura básica do Sistema Único de Saúde (SUS). 

 

“Quando se trabalhava no combate à malária, os guardas – chamados Guardas da Sucam – iam aos lugares mais remotos do Brasil. Realizavam um trabalho com extrema dedicação na tentativa de identificar possíveis casos suspeitos ou doentes de malária e já ali instituir o tratamento. Então, o legado que esses guardas deixaram foi o compromisso com o país, no sentido de prestar assistência”, relembra Pedro Monteiro. 

 

No Brasil, os tratamentos de doenças como a tuberculose se valem também do legado dessa política de monitoramento de localidades e pacientes. Pessoas com tuberculose têm o acompanhamento sistemático das Unidades Básicas de Saúde (UBS), que fornecem a medicação indicada aos pacientes. Além disso, é possível também receber o tratamento em domicílio por meio dos Agentes Comunitários de Saúde. 

 

O denominador comum no combate às epidemias que o Brasil presenciou, do início do século 20 até hoje, foi a articulação de ações de conscientização, campanhas de conscientização, informação e vacinação, por meio da execução de políticas públicas de saúde e saneamento básico.

 

Na ciência, eu creio

Apesar de a oportunidade para se aprender com experiências anteriores no combate às epidemias, o professor Pedro Tauil sente que não há coordenação organizada para mitigar os efeitos da covid-19 no país. “Meu sofrimento e tristeza é verificarmos que não existe coordenação eficaz nas ações de combate à atual pandemia. Vemos alguns lugares muito rígidos e outros nem tanto na execução de ações”, lamenta. 

 

Segundo ele, é necessário observar a característica de transmissão de cada local e adequar as medidas de controle. Essa lição, de acordo com o professor, foi aprendida ao observar a experiência da Sucam no combate à malária. Para Tauil, cada estado conhece bem sua realidade, mas os protocolos deveriam ser pensados de forma centralizada e aplicados localmente, de acordo com cada realidade.

 

Para Marília Peluso, a atual pandemia trouxe como lição o escancaramento das desigualdades sociais, que ficarão ainda mais acentuadas. De acordo com ela, esta é uma questão que não tem tido a devida atenção das autoridades. “Grande parte das pessoas não está apta ao teletrabalho. E o que fazer? Não é questão de ter renda universal ou básica, mas ter uma ferramenta pela qual possam trabalhar e ter seu sustento. Isso precisa ser pensado para o futuro, talvez em parceria com o Sistema S [conjunto de organizações com o objetivo de promover desenvolvimento pessoal e profissional dos trabalhadores da indústria, do comércio e dos serviços]. As epidemias acontecem em todos os lugares, mas algumas pessoas acabam sendo vítimas também da falta de infraestrutura”, opina.

 

Os impactos são também psíquicos. O professor Pedro Tauil relata seu sofrimento pessoal durante a pandemia de covid-19 e faz apelo para as pessoas se cuidarem mais: “Eu, pessoalmente, tenho sofrido com o isolamento. Tenho tido muita tristeza. É duro, é difícil. Tenho quase 80 anos e medo de morrer de coronavírus. A principal medida que vejo é evitar contato com pessoas infectadas, mas o problema é que ninguém sabe quem são essas pessoas. Sofro também com o desemprego da população e peço para que tenhamos uma atitude compreensiva, não sejamos radicais. Aceitemos as medidas já comprovadamente eficazes, mas lembrando que nada ainda é 100% eficaz”, diz.