Texto Débora Diniz*

 

O desalento pode ser uma ferida ética criativa para a transformação do que não suportamos mais conviver, como são as desigualdades. Se os números de mortos no país tiveram que ser contados por mecanismos alternativos à transparência do Estado, como um consórcio de imprensa, passei a imaginar como contar a história dos números por rostos imaginados. As notícias eram fragmentos da realidade desaparecida — uma professora morta numa pequena cidade, uma enfermeira que adoeceu cuidando, uma velhinha esquecida em um abrigo. Cada uma dessas mulheres viveu uma vida, esperava ainda vivê-la, mesmo que o largo da sobrevivência já se anunciasse no corpo. Em poucas notícias, havia um rosto, um nome ou mesmo biografias. Era um número de mulher em meio a um monturo de outras vítimas da pandemia.

 

“Qual o nome dessa senhora?”, perguntou Djamila Ribeiro, ao saber da morte da “empregada doméstica”, no Rio de Janeiro, por covid-19.1 O jornal The New York Times deu a resposta: “A empregada dela está morta”. Em inglês é ainda pior a frase: “Her maid is now dead”.2 Há pronome possessivo: “sua”, “dela”. A empregada doméstica é tida assim pela colonialidade racista do poder — uma posse da casa grande, uma propriedade, cujo usufruto não se suspende em situações de risco como a pandemia. O nome era o registro da propriedade — empregada de alguém. Ao que se sabe, ela foi a primeira mulher a morrer no Rio de Janeiro. Aos 63 anos, trabalhava e viajava para trabalhar. A imagino com os olhos d’água da mãe do conto de Conceição Evaristo, que também trabalhou como empregada doméstica ainda menina, aos nove anos.3 Nunca vi uma foto de Cleonice Gonçalves, d. Cleonice, a senhora sem nome das notícias. Os olhos deveriam ser úmidos de quem vivia como quem sobrevivia. Eu nunca vi os olhos de d. Cleonice, e não sei se a patroa da casa em que ela trabalhou 20 anos saberia dizer as cores dos olhos de d. Cleonice.

 

A senhora tem nome, mas ele parecia pouco importar para as notícias. Engana-se quem imagina que seja pelos valores liberais de confidencialidade ou proteção à intimidade que a morte foi anônima. Foi desnomeada porque era ninguém, só a empregada de alguém. Era um número: a primeira mulher a morrer de covid-19 no Rio de Janeiro. Persigo as empregadas domésticas mortas pela pandemia nas notícias, as enfermeiras, em particular, as auxiliares e técnicas de enfermagem, todas as mulheres com profissões que descrevemos como de cuidado — as que movem a reprodução da vida pelo cuidado das crianças e dos velhos; as que sobrevivem pela economia do cuidado nas caixas de supermercado, nos balcões de farmácia, nos pisos dos hospitais. Tristemente, quanto mais pobres e cuidadoras, mais anônimas são as mulheres nas notícias. Pouco sei sobre quem foram, quem amaram, quem sente saudades da morte fora de hora.

 

Foi assim que criamos o álbum de memórias, Ramon Navarro e eu, em que cultivamos diariamente no Instagram, @reliquia.rum. De março, com a morte de d. Cleonice, a 2 de novembro de 2020, o dia dos mortos, contamos a história de quase 250 mulheres. Imaginamos a conta de Instagram como aqueles álbuns antigos em que se cola uma imagem em um plástico do álbum. Ali a fotografia estaria para a eternidade, até porque para sempre maculada pela cola da lembrança. A primeira história foi a dela: uma empregada doméstica que morreu porque a patroa adoeceu no estrangeiro. Eu não sabia mais nada, e a imaginamos. A imaginamos negra, jovem, de um tempo em que ela, talvez, não imaginaria que morreria porque cuidaria de outro corpo velho. Ter um rosto de um tempo fora da história, de um espaço impossível, de uma beleza imaginada, é uma forma de corporificar o luto político pela pandemia. Talvez, a tenhamos transformado em um personagem — uma personagem de um real que não é ficcional, porém terrivelmente desigual.

 

*Antropóloga, professora da Faculdade de Direito da UnB.

1 Ribeiro, Djamila. Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus. Folha de S. Paulo. 19 de março de 2020. https://www.google.com/amp/s/www1.folha.uol.com.br/amp/colunas/djamila-ribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroa-contagiada-pelo-coronavirus.shtml

2 Londoño, Ernesto; Andreoni, Manuela; Casado, Letícia. Brazilian who visited Italy is first Coronavirus patient in Latin America. New York Times. 26 February 2020. https://www.google.com/amp/s/www.nytimes.com/2020/02/26/world/americas/brazil-italy-coronavirus.amp.html

3 Evaristo, Conceição. “Olhos d’agua”. Olhos d’água. Rio de Janeiro. Pallas. Fundação Biblioteca Nacional. 2016