Defender a agenda feminista é comprometer-se com a vida das mulheres, com a garantia de seus direitos e com o fim da desigualdade entre gêneros

 Foto de mulheres homenageadas no projeto Pioneiras da Ciência, do CNPq. Ilustração: Francisco George Lopes/Secom UnB



Fotos de mulheres homenageadas no projeto Pioneiras da Ciência, do CNPq compõem a identidade visual do Dossiê da Darcy nº 30. Ilustração: Francisco George Lopes/Secom UnB

 

Texto: Gisele Pimenta

 

Seiscentos e setenta e três casos por dia. Cento e dois a cada hora. Essa é a média de denúncias por violência doméstica contra mulheres registradas nas delegacias de polícia do país em 2022. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública também informa que, no período, quatro mulheres foram assassinadas a cada 24 horas por feminicídio. Ou seja, elas morreram porque eram mulheres, essa é a definição.

 

Assustadoramente convincentes, os dados banalizam uma realidade cruel e escondem a humanidade das vítimas, suas histórias e suas dores. Por outro lado, os números escancaram que a violência de gênero não é mero acaso e que suas causas estruturais têm nome: machismo, misoginia, patriarcado.

 

> Confira o Glossário Feminista elaborado pela pesquisadora Camila Galetti

 

“A violência contra a mulher é um exemplo claríssimo de que a luta feminista está presente no dia a dia de todas nós. Desde as disputas sobre como prevenir, proteger e cuidar dessas mulheres ao debate de como punir homens que matam mulheres”, destaca a antropóloga e professora da UnB Debora Diniz.

 

A fala da docente resume o objetivo desta reportagem de explicar como o feminismo é necessário à vida cotidiana das mulheres (e dos homens). Ser feminista é, por exemplo, se posicionar contra a opressão das mulheres. Trata-se de não aceitar uma sociedade sexista, que considera os homens superiores e legítimos de mais direitos. Inclui a indignação contra o suposto poder masculino de dominar o corpo, as vontades, os comportamentos, as escolhas, a vida e até a morte das mulheres.

 

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A referência às mulheres no plural também dá o tom às conceituações mais recentes sobre feminismos, ou seja, um movimento diverso e heterogêneo. Especificamente, existem mulheres negras, indígenas, trans, idosas, adolescentes, pobres e várias outras interseccionalidades de raça, classe e gênero.

 

Falar em feminismos plurais significa dizer que as demandas dessas mulheres se diferenciam e precisam ser consideradas, destacam Soraya Fleischer (UnB) e Daniela Manica (Unicamp), coordenadoras do Mundaréu, podcast de divulgação científica sobre Antropologia cuja última temporada se debruça sobre feminismos e ciência.

 

Importante voz dos estudos feministas no Brasil, Debora Diniz reforça que o feminismo apresenta agendas e necessidades plurais porque o sistema de opressão contra as mulheres “se intercruza com o racismo, o patriarcado, a sexualidade e as formas de discriminação contra o gênero”.

 

Considerando essa pluralidade, pode-se dizer que os feminismos “unem diversos indivíduos em torno do fim das desigualdades de gênero. É um movimento político, social e filosófico que busca ampliar os direitos civis das mulheres”, define a socióloga Camila Galetti.

 

Soraya Fleischer (UnB) e Daniela Manica (Unicamp)A doutoranda em Ciências Sociais pela UnB explica que a sociedade foi pavimentada pelo patriarcado e que, nessa lógica, as mulheres estão “destinadas ao espaço privado e ao trabalho doméstico, afetivo, reprodutivo e de cuidado, enquanto os homens pertencem ao espaço público e ao trabalho produtivo”.

 

“A sociedade patriarcal converge para que os homens sejam tidos como superiores, mais valorizados, mais racionais, mais aptos à tomada de decisão de poder e ao desempenho de funções públicas e políticas”, completa a pesquisadora.

 

PODER E POLÍTICA

 

O exercício do poder na vida política é mais um reflexo da hegemonia masculina regida pela lógica patriarcal. Se há 90 anos as mulheres nem votavam, hoje elas compõem apenas 18% do quadro de eleitos para o Poder Legislativo brasileiro. Dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ainda revelam que, entre 2016 e 2022, as mulheres alcançaram a média de 52% do eleitorado, mas as candidaturas femininas representaram apenas um terço do total e 15% de eleitas.

 

Estudiosa das interfaces entre conservadorismo, neoliberalismo e antifeminismo, Galetti reitera que a luta feminista engloba a presença de mais mulheres na vida pública, mas as mudanças institucionais precisam estar acompanhadas da consciência de que vivemos numa sociedade baseada na desigualdade de gênero.

 

“Uma mulher ocupar um cargo na política institucional ou em outra área de poder não significa que ela lutará por mais visibilidade para a agenda feminista. A representatividade feminina na Câmara dos Deputados aumentou nas últimas eleições, porém atrelada à extrema direita. Esse espectro político entende que homens e mulheres gozam dos mesmos direitos, mesmo quando estatísticas e práticas demonstram o contrário. Logo, não há avanços e sim entraves às questões que atravessam as mulheres”, detalha.

 

De acordo com Diniz, não é possível afirmar se a onda antifeminista, visível na política atual, é mais acentuada do que em outros momentos da história. Todavia, a circulação desses discursos cresceu e hoje eles alcançam mais pessoas. “E quanto mais frágeis são as democracias, maior é o ódio antigênero”, pondera.

 

As pesquisadoras Soraya Fleischer e Daniela Manica concordam que as ideias patriarcais sobre como deve se portar uma mulher encontram público nas escolas, igrejas, mídias e parlamentos. Elas argumentam que há uma capilarização sutil e poderosa que banaliza a vida das mulheres, suas necessidades específicas e os direitos que foram garantidos nos últimos anos, prática que tem influenciado legislações e políticas antigênero.

 

De acordo com as docentes, duas pautas antigas do feminismo – a proteção da vida das mulheres e a garantia de suas escolhas reprodutivas – hoje são desafiadas de novas formas, exigindo mais criatividade, vigilância e disciplina no enfrentamento aos retrocessos. “A justiça reprodutiva precisa avançar. Não podemos tolerar que abortos sigam sendo feitos de modo ilegal e inseguro, comprometendo a vida das mulheres e as suas famílias”, destacam.

 

“Controlar os corpos e proibir as mulheres de fazerem aborto é uma das expressões mais perversas dos múltiplos sistemas de desigualdade da sociedade brasileira. A criminalização do aborto mata, adoece. Sofrem as meninas e majoritariamente as mulheres negras”, conclui Diniz

 

Quer saber mais sobre ciência, tecnologia e antropologias feministas, interseccionais e decoloniais? Ouça a quarta temporada do podcast Mundaréu.