Depoimento

Professor aposentado Antônio Ibañez Ruiz relembra o episódio traumático da invasão da UnB durante a ditadura militar e também o período fervilhante da redemocratização

 

Registros de um dia marcante na UnB: no dia 28 de agosto de 1968, a UnB foi invadida por soldados, que dispararam tiros e bombas de gás lacrimogênio e mantiveram 300 pessoas presas em uma quadraFoto: Antonio Silva

 

O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, matérias inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Anos sombrios e tempos de esperança é o quinto texto do novo projeto.

  

Texto Vanessa Vieira

 

Em 1964, um golpe militar alterou os rumos da história do Brasil e da capital federal. Quatro anos depois, no dia 29 de agosto de 1968, viaturas policiais e caminhões de choque cercavam a UnB. Prédios e salas foram invadidos por soldados, que dispararam tiros e bombas de gás lacrimogênio.

Um dos alvos da operação era a Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília (FEUB), tida como subversiva. A invasão militar culminaria na prisão de funcionários e estudantes, entre eles Honestino Guimarães, que era o então presidente da FEUB. Além disso, o estudante Waldemar Alves da Silva Filho foi baleado na cabeça e perdeu um olho.

 

O engenheiro e professor aposentado da UnB Antônio Ibañez Ruiz presenciou a invasão e compartilha com os leitores da revista Darcy os detalhes daquele dia marcante e traumático. 

 

 

Segundo ele, uma das cenas mais impactantes foi quando cerca de 300 pessoas, entre estudantes, funcionários e professores foram mantidos presos em uma quadra de esporte próxima à Praça Chico Mendes. “Ali ficamos detidos, todos assustados e sem saber o que estava acontecendo”, relembra Ibañez. 

 

De acordo com relatório da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB, a invasão militar da instituição não foi uma exceção e muito menos uma ação isolada. Foi uma operação planejada e calculada, como explicam Cristiano Paixão e Claudia Paiva Carvalho no artigo 50 anos da invasão da Universidade de Brasília: a luta por democracia ontem e hoje“A ação se insere no contexto da escalada repressiva da ditadura ao longo do ano de 1968, que foi marcado por mobilizações estudantis pela qualidade da educação e pela democracia – e que culminaria com a edição do AI-5, em 13 de dezembro daquele ano”, relatam no artigo. 

 

Além do episódio da invasão da UnB, Ibañez relembra também dias mais felizes, da época da redemocratização, que foi, segundo ele, um período fervilhante na Universidade. “Aconteciam diversas conferências. (...) A universidade vivia um clima de abertura, continuamente tomado pelo diálogo”, recorda o professor, que foi também reitor da UnB entre 1989 e 1993.

 

Confira abaixo os detalhes de seu depoimento. 

 

UnB invadida

Dia 29 de agosto de 1968. “Eram cerca de dez horas da manhã. Eu estava em minha sala de trabalho, no mezanino da extremidade sul do Minhocão (Instituto Central de Ciências - ICC Ala Sul). Minha futura esposa trabalhava na Faculdade de Educação (FE) e me ligou dizendo que a polícia política tinha acabado de entrar e invadir a Universidade. Me dirigi à parte aberta do mezanino, junto a outros professores e alunos, e, pela mureta, olhamos para a rua em direção à FE. Muitos estudantes corriam rumo ao Minhocão, fugindo da polícia. Ouvíamos vários estrondos e pensávamos: ‘seriam balas de borracha ou tiros de verdade?’ Foi quando um estudante ao nosso lado caiu com o rosto ensanguentado. Um tiro havia acertado seu olho, mas a quantidade de sangue jorrando pela sua face não nos permitia saber onde era o ferimento. Carregamos o estudante para a mesa de trabalho da sala de um professor de Engenharia Mecânica. Chamamos por outros professores do departamento, que eram militares aposentados, para intervirem junto aos policiais possibilitando a remoção do ferido para o hospital. Mas o caos já havia se instalado. Policiais estavam batendo e jogando gás lacrimogêneo em todo mundo por ali. Chegaram até a sala e sob o comando de 'mãos para o alto', fomos obrigados a sair em fila indiana. Nos levaram até a quadra de esporte próxima à Praça Chico Mendes, onde ficamos detidos, todos assustados e sem saber o que estava acontecendo”.  

 

O relato do professor aposentado da UnB Antonio Ibañez Ruiz relembra quando tropas das polícias Militar, Civil e Política do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) e o Exército chegaram ao campus Darcy Ribeiro quando cerca de três mil alunos se reuniam na praça localizada entre a FE e a quadra José Maurício Honório Filho. Os estudantes integravam uma onda de protestos espalhada no país pela morte do estudante de segundo grau Edson Luís de Lima Souto– assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. A manifestação na UnB culminou com o decreto de prisão de sete universitários, entre eles, Honestino Guimarães. A notícia das prisões revoltou os estudantes. Naquele dia, a repressão no campus veio com tiros e bombas.  

 

“Não sei por quanto tempo ficamos presos lá na quadra, até que uma servidora da Reitoria chegou acompanhada do comandante da polícia. Ela indicava quem era professor e eles nos liberavam. Depois não sei exatamente o que aconteceu. Alguns alunos foram presos e outros liberados. Foi um dia traumático para todos nós”, relembra o professor sobre o episódio no qual cerca de 500 pessoas ficaram retidas na quadra esportiva. 

 

Ibañez atesta que os dias seguintes foram turbulentos. Era difícil obter notícias sobre o estado de saúde do estudante baleado. Foi marcada uma missa na Igreja Nossa Senhora de Fátima, mais conhecida como Igrejinha, situada entre as Superquadras 307/308 Sul. “Pensava-se que poderia ser uma missa do sétimo dia. Acabou sendo uma missa pelo fato da invasão”, conta sobre a notícia espalhada dias mais tarde de que o jovem Waldemar Alves não havia falecido, apesar de ter perdido um olho e permanecido meses hospitalizado com estado de saúde grave.

 

“Entramos na Igrejinha e a política rodeou por fora. Quando a missa acabou, era hora de sair. O medo pairava. A polícia fez um corredor polonês e fomos passando de um em um, sendo xingados. Eles batiam naqueles que desconfiavam ser estudantes. Nessa época, eu morava na 206 Sul. Fui atravessando as Superquadras e o Eixão com medo de que a polícia pegasse quem quisesse. Foi um clima de terror”.

 

Anos de chumbo

A tensão que imbuia os protestos daqueles dias era sintomática do agravamento no cenário político do país, tal como revelou o dia 13 de dezembro daquele mesmo ano (1968). Foi o início da vigência do Ato Institucional número 5 (AI-5), que decretou o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado e suspendeu direitos civis e políticos, a exemplo do direito de habeas corpus. A medida perdurou por uma década, até outubro de 1978.

 

O cerceamento de liberdades e autonomia agravou as dificuldades enfrentadas no contexto universitário. “Não havia professores interessados em vir para a UnB. O salário estava entre os melhores das universidades, mas não era tão atrativo frente aos graves problemas que se acentuavam aqui”, relata Ibañez, acerca da proximidade geográfica da instituição com as instâncias políticas sediadas na capital do país.

 

A invasão da UnB marcou os primeiros anos de Ibañez em Brasília. Convidado para dar aulas de desenho mecânico na instituição, o engenheiro deixou sua vida em São Paulo e, em 1967, mudou-se para o planalto central. Permaneceu na cidade até abril de 1972, quando recebeu uma bolsa para fazer pesquisa em seu país de origem, a Espanha. 

 

"Éramos poucos professores, todos muitos novos. Eu tinha 24 anos e essa primeira vivência na UnB foi intensa. Ficava aqui desde cedo até a noite. Além de preparar as aulas, tínhamos que pensar no currículo dos futuros semestres. Pesquisávamos currículos de cursos do Brasil e de outros países. Além das demandas burocráticas e de ensino, os estudantes eram muito ávidos por conversar. Muitos deles moravam no campus e sofriam procurando pessoas de confiança para conversar. Dedicávamos horas de atenção a eles”, relembra. 

 

Período fervilhante

Após a estadia na Espanha, o engenheiro realizou o doutorado na Inglaterra. O segundo vínculo com a UnB aconteceu após o regresso, em 1978. “Já se respirava outro ambiente político no Brasil, com a luta pela anistia a todo vapor. A ditadura dava seus últimos estertores”, conta. 

 

Esse novo capítulo da trajetória de Ibañez com a Universidade foi marcada por uma atuação intensa junto à Administração Superior: foi decano de Assuntos Comunitários na primeira gestão da UnB após a redemocratização e foi reitor da instituição entre 1989 e 1993. 

 

“A redemocratização foi um período fervilhante na Universidade. Aconteciam diversas conferências, como as da área de saúde que definiram o Sistema Único de Saúde (SUS). A universidade vivia um clima de abertura, continuamente tomado pelo diálogo. Procurei manter isso na minha administração, sistematizando com Fórum de Pensamento Inquieto. Trouxemos pessoas brilhantes do mundo da ciência, da academia e do mundo político”, relata.

 

Entre os feitos no reitorado que lhe dão orgulho, estão a conquista do Hospital Universitário de Brasília (HUB) e a criação de cursos de licenciatura noturnos. Ao olhar para trás, Ibañez conclui: "Nasci na Espanha, onde tive minha formação educacional básica. Em São Paulo, obtive minha graduação. Mas foi em Brasília que me formei como ser humano”.