Entrevista
 
Arquiteto, docente, escritor, cineasta, dono de editora, Frederico de Holanda coleciona fatos marcantes na UnB: de uma greve histórica que impediu a posse de um reitor até a comovente comemoração dos 90 anos de Lucio Costa. Relatos de um crítico fascinado pela capital do país
 
O professor emérito da UnB conversou com a revista Darcy sobre a situação da Universidade e da cidade e contou causos inusitados colecionados ao longo de mais de quatro décadas. | Foto: Luis Gustavo Prado
 
O novo projeto totalmente on-line da revista Darcy traz, a cada semana, reportagens inéditas como parte das comemorações do aniversário da UnB e de Brasília, além de série de matérias sobre o projeto de extensão Vivência Amazônica. Memória viva é a segunda matéria do novo projeto.
 
Texto Marcela D'Alessandro
 
Ao som de música clássica, passam pela tela imagens de obras monumentais, de belos palácios, do dia a dia no Plano Piloto e também cenas da segregação social e das contradições econômicas presentes em Brasília. É o que há de melhor e de pior na cidade. Assim é Brasília: Sinfonia de uma capital, longa-metragem do professor emérito da UnB Frederico Rosa Borges de Holanda. Como ele mesmo define o filme, é um olhar sobre a cidade que o acolheu há 47 anos. 
 
A história do professor com a capital do país começa em um dia 21 de abril, data emblemática para o brasiliense – marca a inauguração da Capital Federal (1960) e da Universidade de Brasília (1962): nesse dia, em 1972, Frederico entrou num fusca com a esposa, rumo a uma nova vida no Planalto Central. A partir daí, vieram grandes transformações. Além da nova moradia, tornou-se pai e professor universitário na Faculdade de Arquitetura (FAU) da UnB.
 
O convite para integrar o quadro de professores do então denominado Instituto de Artes e Arquitetura veio do diretor da Faculdade na época, Miguel Pereira, quando Frederico morava no Rio de Janeiro. Foi na capital carioca que frequentou o Curso de Metodologia do Urbanismo e Administração Municipal do Instituto do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM). O mestrado e o doutorado foram feitos na Universidade de Londres, na Inglaterra, orientado pelo expoente Bill Hillier. 
 
Frederico de Holanda nasceu no Recife (PE) em 1944, formou-se pela Universidade Federal de Pernambuco em 1966. No Nordeste teve as primeiras experiências profissionais, como o trabalho em Nova Iorque, cidade maranhense de 5 mil habitantes, que lhe rendeu não apenas o emprego seguinte, no Rio, mas onde conheceu sua esposa Rosa de Lima, que é assistente social. É um casamento de 52 anos, e o casal tem dois filhos, Pedro e Joana, ambos professores em universidades públicas brasileiras.
 
Com olhar crítico, conversou com a Darcy na UnB sobre a situação atual da Universidade e da cidade, sua paixão pelo cinema e por confeccionar livros, além de contar ‘causos’ inusitados que colecionou ao longo de mais de quatro décadas na capital do país. 
 
Darcy – Brasília, 60 anos: temos a comemorar?
FH – No curto prazo, não. No longo prazo, sim. No curto prazo, as políticas implementadas em Brasília vão contra tudo o que se faz no resto do mundo, particularmente em relação à mobilidade. Para o motorista individual é o paraíso. Só que não é por aí. O carro está condenado como modo de mobilidade urbana no mundo inteiro. Aqui vamos na contramão da história, continuamos com os princípios rodoviaristas que dão prioridade ao carro individual. 
 
"A UnB é um centro de excelência, independentemente do que se diga. Nós somos uma referência. O sonho de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro era que a UnB fosse um polo de pós-graduação, de aperfeiçoamento de docentes, de irradiação do conhecimento". | Foto: Luis Gustavo Prado
 
No longo prazo, eu acho que a cidade é extremamente bem-sucedida. Os europeus morrem de inveja e despeito por não terem conseguido fazer nada como Brasília. Ponto. Não há nada parecido com Brasília no planeta, no sentido de ser uma cidade que pegou a essência do movimento moderno, ao mesmo tempo em que incorporou aspectos de desenho urbano que não são modernos. Lucio Costa, eu gosto de falar, foi o único que introduziu a dimensão monumental e simbólica em Brasília. Nenhuma das outras 25 propostas do concurso do qual ele participou e foi o vencedor tinha algo parecido com o que ele fez. Ele teve a coragem de criar um espaço simbólico e monumental. Não é por acaso que Brasília está se tornando um ponto de peregrinação turística, e não só para especialistas de Arquitetura e Urbanismo.  
 
Darcy – Qual a sua visão sobre a Universidade no atual contexto de Brasília?
FH – A UnB é um centro de excelência, independentemente do que se diga. Nós somos uma referência. Ela foi fundada, na verdade, para ser isso. O sonho de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro era que a UnB fosse um polo de pós-graduação, de aperfeiçoamento de docentes, de irradiação do conhecimento e um polo de multiplicação e aprofundamento para servir de insumo com recursos humanos para as outras universidades. A UnB sempre foi um polo de excelência em inúmeras áreas. Arquitetura é uma delas. Matemática, Geologia, Antropologia são áreas de ponta, cursos com avaliação máxima nas agências de fomento brasileiras e estrangeiras. Temos tido também presença muito marcante nas associações de pesquisas brasileiras. Sediamos seminários internacionais importantes. Somos frequentemente convidados não só para seminários, mas para ocupar postos, repetidas vezes, no governo local e no federal. O respeito pelo nosso corpo docente é traduzido também na demanda que existe por parte do Estado pelos saberes que são produzidos aqui.
 
Hoje estamos vivendo uma situação que nós não acreditávamos que iríamos reviver. A universidade pública espezinhada, desprestigiada, estigmatizada, injuriada. O uso de todo tipo de mentira contra as universidades. Há toda uma coisa orquestrada. Parece que nosso destino é lutar contra essas forças do mal que estão novamente atingindo a universidade pública brasileira.
 
Eu me aposentei em 2014 e não tenho mais tempo para seguir os movimentos, as assembleias... Isso não quer dizer que, quando me chamam para uma manifestação na Esplanada, eu não vá. Vou a todas que posso, apesar de os joelhos estarem ruinzinhos, mas ainda me permitem. Estou tentando focar mais agora na edição de livros. Eu criei uma editora e estou muito focado nesse trabalho, de que gosto muito. Acabei de lançar um livro autoral, chamado Construtores de mim, já publiquei outros de colegas daqui e de fora. Meu pai era artista gráfico e dele eu trago não só a paixão pelos livros e pelo usufruto deles, mas também pela sua feitura. Eu gosto de fazer livros. Creio que tenho esta contribuição a dar e hoje me dou o direito de focar os trabalhos de edição, além do cinema. 
 
Darcy – Como surgiu o envolvimento com o cinema?
FH – Em 2017-2018, eu fiz o mais ambicioso filme até agora, que é um longa-metragem e está disponível no YouTube. Chama-se Brasília: Sinfonia de uma capital, dedicado a Evaldo Coutinho, meu filósofo, mestre, mentor, autor de A Imagem Autônoma, um livro absolutamente crucial no mundo sobre cinematografia. Tenho me dedicado ao cinema não só porque essa paixão data do conhecimento de Evaldo, também porque fazemos muita documentação de arquitetura para trabalhar com os alunos. Isso vem me acompanhando desde sempre. Mas agora, com a aposentadoria, fiquei com mais tempo para fazer mesmo os filmes. Se não me engano, já são 65 no meu canal, entre mais curtos e mais longos e não são só sobre Arquitetura. Os primeiros datam de 2010.
 
Darcy – O senhor chegou em Brasília no início da década de 1970. Qual foi sua impressão? 
FH – Fiquei absolutamente fascinado desde que cheguei aqui. Num primeiro momento, claro, tive uma relação muito crítica com a cidade, porque há um estranhamento inevitável para quem vem de uma cultura urbana, como as de Recife e do Rio de Janeiro. Enfim, é um choque inicial. Aos poucos, vamos compreendendo a cidade e vendo que as pessoas têm uma relação muito amorosa com ela. E esta passou a ser a minha relação também. Nunca deixei de ser um crítico... engraçado, sou citado como crítico feroz de Brasília. Não sei por quê. Porque se lerem com atenção as coisas que eu escrevo, não é bem assim.
 
O professor Frederico falou de sua paixão pelo cinema e por livros: "Criei uma editora e estou muito focado nesse trabalho. Acabei de lançar um livro autoral, Construtores de mim, e já publiquei outros de colegas daqui e de fora". | Foto: Luis Gustavo Prado
 
Darcy – E em relação à UnB e à FAU, como são suas lembranças iniciais?
FH – Olha, foi um impacto, porque eu caí de paraquedas em uma turma que estava terminando o curso. Eu vinha ‘fresquinho’, com ideias relativamente novas, do curso de especialização do Iphan. O pessoal adorou e a relação foi muito boa com os colegas. Nós tínhamos um chamado Polo Brasília e um Polo Centro-Oeste. Eu me vinculei muito ao Polo Centro-Oeste, que estudava Goiás, Mato Grosso. Fizemos visitas de trabalho e levantamento de dados, trabalho de campo. Então, funcionou como uma espécie de batismo de fogo. Foi muito gratificante e muito enriquecedor. Meu vínculo com a faculdade se deu no campo do projeto urbano, seja na graduação, seja na pós-graduação, até a aposentadoria.
 
Darcy – O senhor entrou em 1972 na UnB, quando já estava instalada a ditadura militar no país. Qual era a situação naquela época?
FH – Eu saí para a pós-graduação em 1976 e a coisa estava muito braba ainda. Voltei em 1979. O movimento docente começou a surgir e a fortalecer a reação à ditadura nesse período em que eu estava fora. Em 1980, imediatamente me vinculei ao movimento dos docentes: fiz parte da diretoria que, por meio de uma greve histórica, impediu a posse do Ávila [Geraldo Severo de Souza Ávila]. Era para ser o sucessor do Capitão de Mar e Guerra [posto de oficial da Marinha], José Carlos de Azevedo [então reitor da UnB], que queria colocar um preposto dele aqui como seu herdeiro. Eu estava na diretoria da Associação dos Docentes da Universidade de Brasília (ADUnB) como secretário e essa talvez tenha sido a vitória mais emblemática que aconteceu. Na verdade, aconteceu no iniciozinho da Nova República, em 1985, e avaliamos muito corretamente que tínhamos chances naquele momento, porque vivíamos uma transição, quando assumiram José Sarney, na Presidência da República, e Marco Antônio Maciel, no Ministério da Educação. A turma dirigente da UnB percebeu que não teria apoio do MEC nem do governo federal. Ávila ficou sendo chamado de “Ávila, o Breve”, porque assumiu, ficou alguns diazinhos na Reitoria e derrubamos o cara.
 
Darcy – A FAU passou por mudanças importantes também naquele período? 
FH – Sim. Quando 200 professores foram demitidos da UnB, em 1965, a FAU foi reaberta com uma equipe muito discutível, para dizer o mínimo. Foi aos trancos e barrancos até 1968, quando os alunos lacraram literalmente as portas da faculdade. Aí, houve toda uma negociação nacional, pois o diretor da FAU Miguel Pereira era do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e capitaneou uma equipe para reabrir a escola em 1968-1969, com professores que vieram de São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e Fortaleza (CE). Houve uma gestão compartilhada entre docentes e estudantes em todo esse processo de reabertura, com seminários para repensar o projeto cultural da FAU, do ensino de Arquitetura e das Artes (porque eram cursos unidos naquele momento). Um grande marco na história da faculdade. E foi na esteira dessa reabertura que entrei, porque a faculdade foi crescendo, novos professores foram convidados e eu cheguei em 1972. 
 
Darcy – E como foi de 1972 a 1976, até sair do país para cursar a pós-graduação?
FH – De 1972 a 1976, a tarefa era administrar realmente a luta com o capitão que estava na Reitoria. Nós sempre fomos ponta de lança, uma espinha na goela do capitão. Por exemplo, no episódio da expulsão de alunos, que ele levou para ser ratificada pelo Conselho Universitário, o único voto contra a expulsão foi do diretor da FAU, o professor José Carlos Coutinho. Ele se levantou no meio do auditório e foi o único voto contra. Então, imagina o ódio mortal que o capitão tinha de nós [risos]. Foi sempre uma luta de resistência muito forte e muito presente. Nós podemos, com justa razão, nos orgulhar dessa história.
 
Darcy – O senhor conheceu pessoalmente Oscar Niemeyer? 
FH – Eu fui apresentado ao Oscar, como ele gostava de ser chamado, lá no Congresso Nacional por um amigo comum no finalzinho da década de 1980. Eu me apresentei como diretor da Faculdade e falei: “Oscar, a gente gostaria muito que você fizesse uma visita à FAU para debater a sua obra”. Ele olhou para mim e disse: “Meu filho, eu não debato minha obra”. Falei: “Tudo bem, então para você expor a sua obra... para você fazer uma palestra para a gente, enfim...” [risos]. Aí ele veio e foi lindo. Ele gostava sempre de fazer as palestras desenhando naquelas folhas imensas, num cavalete enorme. Ele fazia aqueles desenhos, aí rasgava depois, jogava no canto do palco e o pessoal corria para pegar. As palestras dele eram um verdadeiro happening. 
 
Darcy – Lembranças também com Lucio Costa? 
FH – No final da década de 1980, Lucio Costa fez uma de suas últimas visitas a Brasília, ao Ceplan [atual Centro de Planejamento Oscar Niemeyer, localizado no campus Darcy Ribeiro], que é um espaço emblemático – lá funcionou o escritório do projeto dos primeiros edifícios do Campus. Ele veio fazer uma palestra e, depois, abriu para questões. Um dos nossos alunos pediu a palavra e falou: “Dr. Lucio, eu quero dizer que, inicialmente, fico meio acanhado de fazer alguma pergunta crítica, porque o senhor sabe que os autores, quando ainda estão vivos...”. Daí Lucio Costa disse: “Não se preocupe não, meu filho, que não vai durar muito, falta pouco”. Foi uma gargalhada geral no auditório e o aluno seguiu com a pergunta.
 
Outro episódio foi quando ele [Lucio Costa] fez 90 anos e, por acaso, veio aqui no dia! A recepção desta vez não foi no Ceplan, foi no auditório da Reitoria. Ele estava lá fazendo uma palestra e, de repente, os alunos invadem o auditório com um bolo de festa com 90 velinhas acesas. Ele se emocionou, chorou. Ele era muito emotivo, foi uma coisa linda.